Seguros

Energia

Telecomunicações

Energia Solar

Aparelhos Auditivos

Créditos

Educação

Seguro de Animais de Estimação

Blogue

O jogo das sombras: como os fundos de investimento estão a moldar o futuro energético português

Nas salas de reuniões de Lisboa e do Porto, onde o ar condicionado zune contra o calor do verão, um novo tipo de poder está a ser exercido. Não vem dos palácios da política nem das sedes das tradicionais utilities. Vem de escritórios discretos, com vistas para o Tejo ou para a Avenida da Boavista, onde gestores de fundos de investimento analisam gráficos e projeções com a mesma intensidade com que um cirurgião estuda uma radiografia. São eles, os novos arquitetos do sistema energético português, que estão a redesenhar o mapa do poder num setor em plena convulsão.

A revolução começou de forma quase impercetível. Enquanto os olhos do país estavam voltados para os leilões de licenças de exploração de lítio ou para os megaprojetos de hidrogénio verde, estes fundos foram tecendo uma rede de participações que hoje abrange desde parques solares no Alentejo até projetos de biomassa no Norte. O seu modus operandi é simples: identificar ativos subvalorizados, injetar capital e expertise, e depois esperar que a transição energética faça o resto do trabalho. O que ninguém antecipou foi a velocidade com que esta estratégia se transformou num tsunami de aquisições.

Na última quinta-feira, enquanto os portugueses se preparavam para o fim-de-semana, o fundo britânico Green Energy Partners anunciou a compra de mais três centrais fotovoltaicas no distrito de Évora. O valor da transação não foi divulgado, mas fontes próximas do negócio garantem que ultrapassou os 40 milhões de euros. Não se trata de um caso isolado. Nos últimos dezoito meses, pelo menos quinze operações semelhantes foram concretizadas, envolvendo fundos da Alemanha, França, Holanda e até dos Emirados Árabes Unidos. O que atrai estes investidores não é apenas o sol português, mas um conjunto de fatores que transformaram o país num laboratório da transição energética.

O primeiro destes fatores é o enquadramento regulatório. Portugal criou uma das legislações mais favoráveis da Europa para o autoconsumo e as comunidades de energia, abrindo portas a modelos de negócio que noutros países ainda são considerados experimentais. O segundo é a maturidade do mercado: depois de anos de investimento em renováveis, o país desenvolveu know-how técnico e uma cadeia de fornecedores que reduz os riscos de implementação. O terceiro, e talvez o mais importante, é a estabilidade política num continente onde a guerra na Ucrânia tornou a segurança energética uma obsessão nacional.

Mas esta invasão silenciosa de capital internacional tem um lado menos visível. Nas localidades onde estes projetos se instalam, os moradores começam a questionar quem beneficia realmente da revolução verde. Em Monsaraz, onde um fundo holandês adquiriu 200 hectares para um megaparque solar, os agricultores queixam-se de que os terrenos arrendados para a produção de energia poderiam ser usados para cultivo. Em Miranda do Douro, um projeto de biomassa financiado por capital francês enfrenta resistência de ambientalistas que alertam para o risco de monoculturas de eucalipto. O dilema é cruel: como conciliar a urgência da descarbonização com a justiça territorial?

Os números, contudo, são implacáveis. Segundo dados da APREN, a associação de energias renováveis, os fundos de investimento já controlam cerca de 30% da capacidade instalada em solar e eólico em Portugal. Até 2030, esta percentagem poderá ultrapassar os 50%, transformando-os nos verdadeiros donos da transição energética. O Estado, que durante décadas deteve o monopólio através da EDP, vê agora o seu papel reduzido ao de regulador e facilitador. As utilities tradicionais, por seu lado, são forçadas a competir com estes novos players que têm balanços mais robustos e horizontes de investimento mais longos.

O que significa esta mudança de paradigma para os consumidores? Nos próximos anos, a fatura da luz poderá tornar-se mais volátil, refletindo não apenas os custos de produção mas também as expectativas de retorno dos investidores. A boa notícia é que a concorrência deverá acelerar a inovação, com novos produtos e serviços a surgirem no mercado. A má notícia é que o controlo democrático sobre um setor estratégico como a energia poderá enfraquecer, à medida que as decisões passam a ser tomadas em board rooms em Frankfurt ou Londres.

Há, no entanto, uma luz ao fundo do túnel. Alguns destes fundos estão a adotar modelos de governança que incluem as comunidades locais nos processos de decisão. Outros comprometem-se a reinvestir parte dos lucros em projetos sociais nas regiões onde operam. São gestos que, se generalizados, poderão humanizar uma revolução que até agora tem sido contada principalmente em megawatts e euros.

O que está em jogo vai muito além de elétrons a circular na rede. Está em jogo o modelo de sociedade que queremos construir: uma onde a energia limpa seja um direito acessível a todos, não um produto financeiro negociado em mercados globais. Nas próximas semanas, o Parlamento discutirá uma nova lei para as comunidades de energia. Será a oportunidade para trazer esta discussão para a luz do dia, antes que o futuro energético português seja decidido à sombra dos fundos de investimento.

Tags