O som esquecido: uma investigação sobre o que perdemos quando deixamos de ouvir
Há um silêncio que cresce nas cidades portuguesas, mas não é o silêncio da calma ou da paz. É o silêncio que se instala gradualmente nos ouvidos de quem vai perdendo a capacidade de ouvir os sons do mundo. Enquanto percorria as ruas de Lisboa com um audiologista reformado, percebi que a maioria de nós não sabe o que significa realmente perder a audição. Não é apenas deixar de ouvir palavras - é perder a trilha sonora da própria vida.
O primeiro contacto com esta realidade veio através de Maria, uma costureira de 68 anos que trabalha há décadas no mesmo atelier no Porto. Ela não percebeu quando a máquina de costura deixou de fazer aquele ruído característico que a acompanhava desde os 18 anos. 'Um dia notei que o barulho do trânsito lá fora estava diferente', conta, enquanto ajusta os óculos. 'Parecia que alguém tinha baixado o volume do mundo.' A sua história não é única. Em Portugal, estima-se que mais de 600 mil pessoas sofram de perda auditiva significativa, mas menos de metade procura ajuda.
O que descobri durante esta investigação vai além dos números. A perda auditiva não acontece apenas nos idosos. João, um DJ de 32 anos de Coimbra, começou a notar os primeiros sinais aos 28. 'As altas frequências nas minhas mixagens começaram a desaparecer', explica, mostrando-me os seus fones profissionais. 'Pensei que era equipamento defeituoso, até que um colega me alertou.' A exposição prolongada a ruído intenso, seja em concertos, ambientes de trabalho ou mesmo através do uso constante de auriculares, está a criar uma geração mais nova com problemas auditivos precoces.
Mas o aspecto mais surpreendente desta investigação não está nos ouvidos, mas no cérebro. Conversando com neurologistas em Lisboa e no Porto, aprendi que quando deixamos de estimular certas vias auditivas, o cérebro começa a 'redesenhar-se'. As áreas responsáveis pela audição podem ser ocupadas por outras funções, tornando a reabilitação mais difícil quanto mais se espera. 'É como um músculo que atrofia', explica a Dra. Sofia Mendes, especialista em neuroplasticidade. 'O cérebro é eficiente - se não usamos uma função, realoca os recursos.'
Esta reconfiguração cerebral ajuda a explicar por que tantas pessoas com perda auditiva desenvolvem isolamento social, depressão e até declínio cognitivo acelerado. Não é apenas uma questão de não ouvir bem - é o cérebro inteiro que se adapta a uma realidade mais silenciosa, e nem sempre para melhor. Um estudo português recente mostrou que idosos com perda auditiva não tratada têm três vezes mais probabilidade de desenvolver demência.
A tecnologia oferece soluções cada vez mais sofisticadas, desde aparelhos auditivos quase invisíveis até implantes cocleares que restauram a audição em casos profundos. Mas o verdadeiro desafio, descobri, não é tecnológico - é cultural. 'Há um estigma enorme', confidencia-me Carlos, um professor universitário de 45 anos que usa aparelhos há três. 'As pessoas associam aparelhos auditivos à velhice, à incapacidade. Demorei dois anos a aceitar que precisava deles.'
Este estigma tem consequências reais. Muitos portugueses adiam a procura de ajuda durante anos, permitindo que a perda auditiva progrida e que as alterações cerebrais se tornem mais difíceis de reverter. As clínicas de audiologia que visitei em Lisboa, Porto e Faro confirmam este padrão: a maioria dos pacientes chega quando a perda já é moderada a severa, não quando os primeiros sinais aparecem.
Mas há esperança nas novas gerações. Em escolas por todo o país, programas de consciencialização estão a ensinar crianças a proteger a sua audição. Em cafés e centros comunitários, grupos de apoio criam espaços onde pessoas com perda auditiva podem partilhar experiências sem julgamento. E talvez o mais importante: cada vez mais figuras públicas - músicos, atores, até atletas - estão a falar abertamente sobre as suas experiências com perda auditiva.
No final desta investigação, sento-me numa esplanada no Chiado e fecho os olhos. Ouço o tilintar das chávenas, o riso de um casal à mesa ao lado, o som distante de um elétrico a subir a colina. São sons que muitos dão como garantidos, até começarem a desaparecer. A audição não é apenas um sentido - é a nossa ligação ao mundo, às pessoas, à vida. Cuidar dela não é um sinal de fraqueza, mas de sabedoria. E num país com uma população cada vez mais envelhecida, essa sabedoria pode fazer toda a diferença entre viver e meramente existir.
O primeiro contacto com esta realidade veio através de Maria, uma costureira de 68 anos que trabalha há décadas no mesmo atelier no Porto. Ela não percebeu quando a máquina de costura deixou de fazer aquele ruído característico que a acompanhava desde os 18 anos. 'Um dia notei que o barulho do trânsito lá fora estava diferente', conta, enquanto ajusta os óculos. 'Parecia que alguém tinha baixado o volume do mundo.' A sua história não é única. Em Portugal, estima-se que mais de 600 mil pessoas sofram de perda auditiva significativa, mas menos de metade procura ajuda.
O que descobri durante esta investigação vai além dos números. A perda auditiva não acontece apenas nos idosos. João, um DJ de 32 anos de Coimbra, começou a notar os primeiros sinais aos 28. 'As altas frequências nas minhas mixagens começaram a desaparecer', explica, mostrando-me os seus fones profissionais. 'Pensei que era equipamento defeituoso, até que um colega me alertou.' A exposição prolongada a ruído intenso, seja em concertos, ambientes de trabalho ou mesmo através do uso constante de auriculares, está a criar uma geração mais nova com problemas auditivos precoces.
Mas o aspecto mais surpreendente desta investigação não está nos ouvidos, mas no cérebro. Conversando com neurologistas em Lisboa e no Porto, aprendi que quando deixamos de estimular certas vias auditivas, o cérebro começa a 'redesenhar-se'. As áreas responsáveis pela audição podem ser ocupadas por outras funções, tornando a reabilitação mais difícil quanto mais se espera. 'É como um músculo que atrofia', explica a Dra. Sofia Mendes, especialista em neuroplasticidade. 'O cérebro é eficiente - se não usamos uma função, realoca os recursos.'
Esta reconfiguração cerebral ajuda a explicar por que tantas pessoas com perda auditiva desenvolvem isolamento social, depressão e até declínio cognitivo acelerado. Não é apenas uma questão de não ouvir bem - é o cérebro inteiro que se adapta a uma realidade mais silenciosa, e nem sempre para melhor. Um estudo português recente mostrou que idosos com perda auditiva não tratada têm três vezes mais probabilidade de desenvolver demência.
A tecnologia oferece soluções cada vez mais sofisticadas, desde aparelhos auditivos quase invisíveis até implantes cocleares que restauram a audição em casos profundos. Mas o verdadeiro desafio, descobri, não é tecnológico - é cultural. 'Há um estigma enorme', confidencia-me Carlos, um professor universitário de 45 anos que usa aparelhos há três. 'As pessoas associam aparelhos auditivos à velhice, à incapacidade. Demorei dois anos a aceitar que precisava deles.'
Este estigma tem consequências reais. Muitos portugueses adiam a procura de ajuda durante anos, permitindo que a perda auditiva progrida e que as alterações cerebrais se tornem mais difíceis de reverter. As clínicas de audiologia que visitei em Lisboa, Porto e Faro confirmam este padrão: a maioria dos pacientes chega quando a perda já é moderada a severa, não quando os primeiros sinais aparecem.
Mas há esperança nas novas gerações. Em escolas por todo o país, programas de consciencialização estão a ensinar crianças a proteger a sua audição. Em cafés e centros comunitários, grupos de apoio criam espaços onde pessoas com perda auditiva podem partilhar experiências sem julgamento. E talvez o mais importante: cada vez mais figuras públicas - músicos, atores, até atletas - estão a falar abertamente sobre as suas experiências com perda auditiva.
No final desta investigação, sento-me numa esplanada no Chiado e fecho os olhos. Ouço o tilintar das chávenas, o riso de um casal à mesa ao lado, o som distante de um elétrico a subir a colina. São sons que muitos dão como garantidos, até começarem a desaparecer. A audição não é apenas um sentido - é a nossa ligação ao mundo, às pessoas, à vida. Cuidar dela não é um sinal de fraqueza, mas de sabedoria. E num país com uma população cada vez mais envelhecida, essa sabedoria pode fazer toda a diferença entre viver e meramente existir.