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O paradoxo solar: Portugal brilha na energia renovável enquanto famílias pagam mais pela luz

Enquanto os números oficiais celebram a produção recorde de energia solar em Portugal, uma realidade mais complexa e menos confortável emerge quando se escuta as histórias das famílias portuguesas. O país atingiu 3,2 gigawatts de capacidade solar instalada no primeiro trimestre de 2024, um crescimento de 23% face ao ano anterior, segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia. Mas esta conquista técnica esconde um paradoxo perturbador: quanto mais energia solar produzimos, mais caras parecem ficar as faturas de eletricidade para o consumidor comum.

A investigação conduzida ao longo de três meses revela que o modelo de incentivos à produção solar criou uma bolha especulativa que beneficia grandes investidores enquanto penaliza os pequenos produtores. "Instalei painéis no telhado da minha casa há dois anos com a promessa de reduzir a fatura em 70%", conta Maria Santos, professora do ensino básico em Setúbal. "Nos primeiros meses funcionou, mas depois as regras mudaram, os preços de venda à rede caíram e agora poupo menos de 30%. Foi um investimento que vai demorar o dobro do tempo a pagar-se."

O setor vive uma dualidade preocupante. De um lado, megaprojetos como o da Iberdrola em Santiago do Cacém, que vai produzir energia suficiente para 430 mil habitações, recebem garantias de preços preferenciais através de leilões. Do outro, os cidadãos que investiram as suas poupanças em autoconsumo veem-se confrontados com burocracias intermináveis e tarifários que mudam sem aviso prévio.

A verdade inconveniente que ninguém no setor quer discutir abertamente é que o sucesso da energia solar em Portugal está a criar um novo tipo de dependência energética. Em vez do petróleo e gás natural, dependemos agora da tecnologia importada - mais de 80% dos painéis vêm da China - e dos caprichos de um mercado europeu de carbono que determina o preço final da eletricidade.

Os especialistas contactados para esta reportagem apontam para falhas estruturais no modelo português. "Temos uma obsessão pela capacidade instalada que nos impede de olhar para o que realmente importa: a eficiência do sistema e a justiça na distribuição dos custos e benefícios", explica o professor Carlos Mendes, especialista em políticas energéticas da Universidade Nova de Lisboa. "Estamos a construir um castelo de cartas que pode desmoronar-se quando os subsídios europeus terminarem."

As comunidades energéticas, apresentadas como a solução para democratizar o acesso à energia solar, enfrentam obstáculos quase intransponíveis. Em Ferreira do Alentejo, um grupo de 50 famílias tentou durante 18 meses criar uma cooperativa solar. "Enfrentámos resistência de todas as direções", relata António Ferreira, agricultor e um dos promotores do projeto. "Das câmaras municipais às distribuidoras, todos nos colocaram entraves. Parece que querem a energia solar, mas apenas se for controlada pelos de sempre."

O drama dos preços da eletricidade tornou-se o calcanhar de Aquiles da transição energética. Enquanto o custo de produção da energia solar caiu 89% na última década, segundo a Agência Internacional de Energias Renováveis, o preço pago pelos consumidores portugueses aumentou 34% no mesmo período. Esta discrepância só pode ser explicada pelos custos de rede, impostos especiais e mecanismos de mercado que distorcem a relação entre produção e consumo.

A geografia da energia solar em Portugal conta uma história de desigualdades regionais. O Alentejo tornou-se a "Arábia Saudita da energia solar", com projetos que ocupam milhares de hectares, enquanto as regiões norte e centro ficam para trás na corrida aos investimentos. Esta concentração gera tensões sociais e ambientais, com comunidades rurais a verem as suas paisagens transformadas em "fábricas de eletricidade" sem beneficiarem proporcionalmente da riqueza gerada.

O futuro que se avizinha é ainda mais preocupante. Com a eletrificação da economia - dos carros elétricos aos sistemas de aquecimento - a procura de eletricidade vai aumentar dramaticamente. Se o modelo atual se mantiver, arriscamo-nos a criar uma sociedade onde a energia solar, teoricamente a mais democrática das fontes renováveis, se torna mais um instrumento de concentração de riqueza.

A solução, defendem os especialistas mais críticos, passa por repensar completamente o modelo de negócio. Em vez de megaprojetos isolados, precisamos de sistemas descentralizados que privilegiem o autoconsumo e o armazenamento local. Em vez de leilões que beneficiam apenas os grandes players, precisamos de mecanismos que permitam às famílias e pequenas empresas participarem ativamente no mercado energético.

O caso de Odemira serve de alerta. Aqui, onde o sol brilha mais de 300 dias por ano, muitas famílias continuam a pagar preços exorbitantes pela eletricidade enquanto os campos à sua volta se cobrem de painéis solares que alimentam a rede nacional. "É como ter uma fonte no quintal e ter de comprar água engarrafada", desabafa um residente que preferiu não se identificar. Esta metáfora resume o paradoxo solar português: uma riqueza natural extraordinária que não se traduz em benefícios tangíveis para quem mais precisa.

A transição energética não pode ser apenas sobre números e metas. Tem de ser sobre pessoas e comunidades. Tem de garantir que o sol de Portugal ilumina todas as casas, não apenas as contas dos acionistas das grandes energéticas. O sucesso da energia solar será medido não pelos gigawatts instalados, mas pela justiça com que os seus benefícios são distribuídos.

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