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O paradoxo solar português: como o país do sol continua a nadar em burocracia energética

O sol português brilha com uma intensidade que faz inveja à maioria dos países europeus. São mais de 300 dias de radiação generosa por ano, um potencial que poderia transformar Portugal numa potência energética continental. No entanto, enquanto os raios de sol banham o território, as sombras da burocracia continuam a projetar-se sobre o setor solar, criando um dos paradoxos mais intrigantes da economia portuguesa.

Nos últimos meses, os números contam uma história de dois países. Por um lado, a capacidade solar instalada cresceu 31% no primeiro semestre de 2024, segundo dados da APREN. Por outro, os projetos aprovados representam apenas uma fração dos mais de 300 pedidos que aguardam licenciamento. É como ter um Ferrari na garagem, mas sem a chave para o ligar.

A verdadeira revolução está a acontecer longe dos holofotes mediáticos, nos telhados das casas e nas coberturas das pequenas empresas. O autoconsumo tornou-se o cavalo de batalha dos portugueses que decidiram não esperar pelo Estado. Instaladores relatam filas de espera de três meses, com famílias a investirem as poupanças em painéis que prometem libertá-las da volatilidade dos preços da eletricidade.

Mas esta corrida ao ouro solar esconde problemas estruturais que ameaçam o sucesso a longo prazo. A rede elétrica nacional, desenhada para um modelo centralizado de produção, mostra sinais de saturação em regiões como o Alentejo e o Algarve. Os inversores solares desligam automaticamente quando detetam sobrecarga na rede, deixando os painéis a olhar para o sol sem poderem trabalhar.

O licenciamento tornou-se o calcanhar de Aquiles do setor. Um estudo recente da Deloitte revela que Portugal tem o segundo pior tempo médio de aprovação de projetos renováveis na Europa Ocidental. Enquanto em Espanha um parque solar demora em média 18 meses desde a conceção até à ligação à rede, em Portugal esse período estende-se para além dos 30 meses.

Os investidores internacionais começam a mostrar sinais de cansaço. Um fundo alemão que planeava investir 400 milhões de euros em projetos solares no Alentejo colocou o plano em pausa indefinida, citando "incertezas regulatórias e administrativas". O caso não é isolado - vários players internacionais estão a reavaliar a sua presença no mercado português.

A geografia do investimento solar conta outra história reveladora. Enquanto o interior alentejano recebe a maioria dos grandes projetos, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto concentram 70% das instalações de autoconsumo. Esta divisão geográfica reflete não apenas diferentes padrões de consumo, mas também distintas capacidades de investimento e acesso ao crédito.

A tecnologia oferece soluções que a política ainda não conseguiu abraçar. As comunidades de energia renovável, permitidas pela legislação europeia, poderiam democratizar o acesso à energia solar, mas esbarram numa teia regulatória que as torna praticamente inviáveis. Enquanto isso, países como a Alemanha já têm mais de 2.000 comunidades energéticas em funcionamento.

O armazenamento de energia emerge como o próximo grande desafio. As baterias domésticas tornaram-se o objeto de desejo dos proprietários de painéis solares, mas o seu custo continua proibitivo para a maioria das famílias. Os especialistas estimam que só quando o preço das baterias cair abaixo dos 300 euros por kWh é que se assistirá a uma massificação real do armazenamento descentralizado.

O setor agrícola representa a fronteira seguinte da revolução solar. Os chamados agrivoltaicos - sistemas que combinam produção agrícola com geração de energia - começam a surgir em projetos-piloto no Ribatejo e no Alentejo. A tecnologia permite cultivar sob os painéis, criando microclimas que podem melhorar o rendimento de certas culturas.

Os leilões de capacidade solar, que em 2019 e 2020 atraíram investimentos recorde, perderam o brilho inicial. O último leilão, em 2023, ficou aquém das expectativas, com apenas 60% da capacidade disponível a ser atribuída. Os investidores queixam-se de margens cada vez mais reduzidas e de condições contratuais menos favoráveis.

A indústria nacional de componentes solares tenta ganhar tração num mercado dominado por importações chinesas. Uma fábrica no norte do país começou recentemente a produzir estruturas de suporte para painéis, mas a produção de células e módulos continua praticamente inexistente em território nacional, representando uma oportunidade perdida em termos de soberania industrial.

O futuro do solar em Portugal dependerá da capacidade de resolver o que os especialistas chamam de "o trilema energético": como garantir segurança de abastecimento, preços acessíveis e sustentabilidade ambiental. Até agora, o país tem sido brilhante no último aspeto, medíocre no primeiro e desastroso no segundo.

Os próximos meses serão decisivos. A revisão do Plano Nacional Energia e Clima 2030, prevista para o final do ano, terá de abordar estas contradições. Enquanto isso, os portugueses continuam a votar com as suas carteiras, instalando painéis solares a um ritmo que desafia a lentidão burocrática e constrói, telhado a telhado, a independência energética que o sistema ainda não conseguiu entregar.

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