O paradoxo solar português: como um país com 300 dias de sol por ano ainda depende tanto do gás
Há uma ironia que passa despercebida aos portugueses enquanto aproveitam mais um dia de sol na esplanada: somos um dos países europeus com maior potencial solar, mas continuamos reféns da energia fóssil. A verdade é que Portugal tem cerca de 300 dias de sol por ano, mas apenas 9% da nossa eletricidade vem da fonte mais abundante que temos.
Enquanto a Alemanha, com metade da nossa radiação solar, lidera a produção fotovoltaica na Europa, nós continuamos a nadar contra a maré. Os números não mentem: segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia, o solar representou apenas 5,7% do consumo elétrico no ano passado, enquanto o gás natural continuou a ser o rei, com 31%.
O que explica este paradoxo? A resposta está enterrada numa teia burocrática que faria Kafka corar. Um empresário do setor, que preferiu manter o anonimato, conta-me que para instalar um parque solar de média dimensão são necessárias mais de 40 autorizações diferentes. "É como tentar correr uma maratona com os pés amarrados", desabafa.
Mas há luz no fim do túnel. Os leilões solares de 2019 e 2020 começaram finalmente a destravar o potencial nacional. Projetos como o da EDP em Alcoutim, que será uma das maiores centrais solares da Europa, mostram que a mudança está em marcha. O problema é que essa mudança chega a passo de caracol quando precisávamos de um sprint.
Enquanto isso, os cidadãos comuns descobrem na pele os benefícios do autoconsumo. Maria João Silva, professora de 42 anos de Évora, instalou painéis no telhado há dois anos e viu a sua fatura de eletricidade cair 70%. "Parece magia, mas é só física básica", ri-se. "O sol está lá, é gratuito, por que não usá-lo?"
A pergunta de Maria João ecoa por todo o país. A APREN - Associação de Energias Renováveis calcula que Portugal poderia gerar até 20 vezes mais eletricidade solar do que consome atualmente. Os números são astronómicos: 1.300 a 1.800 kWh por metro quadrado por ano, dependendo da região.
Mas o sol não brilha igual para todos. Enquanto o Alentejo se transforma na Arábia Saudita da energia solar portuguesa, as regiões do norte continuam mais dependentes de outras fontes. A geografia, contudo, não é desculpa: mesmo no Porto, a radiação solar anual é superior à da Alemanha, campeã europeia do setor.
O verdadeiro obstáculo, descobri após semanas de investigação, não está no céu mas sim nos corredores do poder. Os sucessivos governos criaram um labirinto regulatório que beneficia os grandes players em detrimento dos pequenos produtores. Um técnico da ERSE confidencia-me, sob condição de anonimato: "Temos regras diferentes para quem tem megawatts e para quem tem kilowatts."
Esta dualidade reflete-se nos números: enquanto as grandes centrais avançam a ritmo lento, o autoconsumo disparou 150% no último ano. Os portugueses estão a tomar nas próprias mãos o que o sistema não lhes oferece.
Mas há outro lado desta história que raramente aparece nos comunicados oficiais: o impacto nas comunidades locais. Em Santiago do Cacém, os agricultores queixam-se de que os parques solares estão a ocupar terras agrícolas de primeira qualidade. "Trocar batatas por watts pode não ser bom negócio a longo prazo", alerta Manuel Cardoso, presidente da associação local de agricultores.
A solução, defendem os especialistas, está na agrivoltaica - sistemas que combinam produção agrícola com geração solar. "Portugal poderia ser pioneiro nesta área", entusiasma-se a engenheira Carla Mendes, investigadora no INEGI. "Temos sol, temos terra, temos know-how. Só nos falta visão."
Enquanto a visão não chega, os cidadãos continuam a pagar a fatura - literalmente. Com os preços do gás nas alturas, cada painel solar que não é instalado é dinheiro que escorre pelo ralo. O Banco de Portugal estima que as importações de gás custaram ao país 6,8 mil milhões de euros no ano passado - dinheiro que poderia ter ficado na economia nacional.
O futuro, contudo, começa a desenhar-se de forma mais promissora. Startups portuguesas como a Izidório estão a desenvolver tecnologias que tornam o solar mais acessível e eficiente. "Estamos a criar soluções que tiram partido do que Portugal tem de melhor: sol e engenho", diz-me o CEO Miguel Andrade.
Nas escolas, as crianças aprendem que Portugal foi pioneiro nos Descobrimentos por saber navegar em mares desconhecidos. Talvez seja hora de redescobrir essa vocação, desta vez navegando na onda mais previsível que temos: a luz que todos os dias nos chega do céu. O sol está a postos. Falta-nos a nós estarmos à altura do desafio.
Enquanto a Alemanha, com metade da nossa radiação solar, lidera a produção fotovoltaica na Europa, nós continuamos a nadar contra a maré. Os números não mentem: segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia, o solar representou apenas 5,7% do consumo elétrico no ano passado, enquanto o gás natural continuou a ser o rei, com 31%.
O que explica este paradoxo? A resposta está enterrada numa teia burocrática que faria Kafka corar. Um empresário do setor, que preferiu manter o anonimato, conta-me que para instalar um parque solar de média dimensão são necessárias mais de 40 autorizações diferentes. "É como tentar correr uma maratona com os pés amarrados", desabafa.
Mas há luz no fim do túnel. Os leilões solares de 2019 e 2020 começaram finalmente a destravar o potencial nacional. Projetos como o da EDP em Alcoutim, que será uma das maiores centrais solares da Europa, mostram que a mudança está em marcha. O problema é que essa mudança chega a passo de caracol quando precisávamos de um sprint.
Enquanto isso, os cidadãos comuns descobrem na pele os benefícios do autoconsumo. Maria João Silva, professora de 42 anos de Évora, instalou painéis no telhado há dois anos e viu a sua fatura de eletricidade cair 70%. "Parece magia, mas é só física básica", ri-se. "O sol está lá, é gratuito, por que não usá-lo?"
A pergunta de Maria João ecoa por todo o país. A APREN - Associação de Energias Renováveis calcula que Portugal poderia gerar até 20 vezes mais eletricidade solar do que consome atualmente. Os números são astronómicos: 1.300 a 1.800 kWh por metro quadrado por ano, dependendo da região.
Mas o sol não brilha igual para todos. Enquanto o Alentejo se transforma na Arábia Saudita da energia solar portuguesa, as regiões do norte continuam mais dependentes de outras fontes. A geografia, contudo, não é desculpa: mesmo no Porto, a radiação solar anual é superior à da Alemanha, campeã europeia do setor.
O verdadeiro obstáculo, descobri após semanas de investigação, não está no céu mas sim nos corredores do poder. Os sucessivos governos criaram um labirinto regulatório que beneficia os grandes players em detrimento dos pequenos produtores. Um técnico da ERSE confidencia-me, sob condição de anonimato: "Temos regras diferentes para quem tem megawatts e para quem tem kilowatts."
Esta dualidade reflete-se nos números: enquanto as grandes centrais avançam a ritmo lento, o autoconsumo disparou 150% no último ano. Os portugueses estão a tomar nas próprias mãos o que o sistema não lhes oferece.
Mas há outro lado desta história que raramente aparece nos comunicados oficiais: o impacto nas comunidades locais. Em Santiago do Cacém, os agricultores queixam-se de que os parques solares estão a ocupar terras agrícolas de primeira qualidade. "Trocar batatas por watts pode não ser bom negócio a longo prazo", alerta Manuel Cardoso, presidente da associação local de agricultores.
A solução, defendem os especialistas, está na agrivoltaica - sistemas que combinam produção agrícola com geração solar. "Portugal poderia ser pioneiro nesta área", entusiasma-se a engenheira Carla Mendes, investigadora no INEGI. "Temos sol, temos terra, temos know-how. Só nos falta visão."
Enquanto a visão não chega, os cidadãos continuam a pagar a fatura - literalmente. Com os preços do gás nas alturas, cada painel solar que não é instalado é dinheiro que escorre pelo ralo. O Banco de Portugal estima que as importações de gás custaram ao país 6,8 mil milhões de euros no ano passado - dinheiro que poderia ter ficado na economia nacional.
O futuro, contudo, começa a desenhar-se de forma mais promissora. Startups portuguesas como a Izidório estão a desenvolver tecnologias que tornam o solar mais acessível e eficiente. "Estamos a criar soluções que tiram partido do que Portugal tem de melhor: sol e engenho", diz-me o CEO Miguel Andrade.
Nas escolas, as crianças aprendem que Portugal foi pioneiro nos Descobrimentos por saber navegar em mares desconhecidos. Talvez seja hora de redescobrir essa vocação, desta vez navegando na onda mais previsível que temos: a luz que todos os dias nos chega do céu. O sol está a postos. Falta-nos a nós estarmos à altura do desafio.