O paradoxo solar português: como um país ensolarado ainda não brilha na energia fotovoltaica
Portugal tem mais de 300 dias de sol por ano, um recurso natural que cai do céu literalmente de graça. No entanto, quando se olha para os números da produção de energia solar, o país parece preferir a sombra. Enquanto a Alemanha, com metade da radiação solar, lidera a Europa na capacidade fotovoltaica instalada, Portugal continua a nadar em águas turvas. O que está a falhar nesta equação tão simples?
A resposta, como descobri em meses de investigação, está enterrada numa teia burocrática que faria Kafka corar. Um empresário do Alentejo, que pediu para manter o anonimato, mostrou-me a sua pilha de processos: 14 meses para obter licença para uma instalação de 50 kW, 22 entidades diferentes envolvidas, 3.500 páginas de documentação. "Parece que inventámos o sol", ironizou, "e agora temos de pedir autorização para o usar."
Enquanto isso, nas redações dos jornais económicos, os especialistas debatem os números que não fecham. O Plano Nacional de Energia e Clima promete 9 GW de capacidade solar até 2030, mas ao ritmo atual só lá chegaremos em 2047. Os leilões solares, aclamados como revolucionários, entregaram apenas 1,4 GW em três anos. Alguém está a fazer as contas com lápis de cera.
O observador mais atento nota um padrão curioso: as grandes utilities tradicionais continuam a dominar o jogo. Enquanto os pequenos produtores se afogam em papelada, os mesmos de sempre ganham os concursos com margens tão estreitas que levantariam suspeitas noutro qualquer setor. Será coincidência que os mesmos grupos que durante décadas venderam gás e carvão sejam agora os campeões do sol?
Nas ruas, porém, algo está a mudar. As comunidades energéticas começam a brotar como cogumelos após a chuva. Em Serpa, um grupo de agricultores instalou painéis sobre os telhados dos celeiros e agora vende eletricidade à rede. Em Lisboa, um condomínio transformou o seu parque de estacionamento numa central solar que abastece 40 famílias. São histórias de resistência que mostram que, quando o sistema falha, as pessoas inventam o seu próprio sistema.
A tecnologia, essa, não espera por licenças. Os painéis de nova geração já convertem 23% da luz solar em eletricidade, contra os 15% de há uma década. As baterias de lítio caíram 89% em preço desde 2010. E os "agrivoltaicos" - painéis elevados sobre culturas agrícolas - provam que podemos ter sol e sombra ao mesmo tempo. O futuro já chegou, só que ainda não foi distribuído por todos os municípios.
O verdadeiro drama está nos números que ninguém vê. Enquanto discutimos megawatts, esquecemos os empregos: cada milhão investido em solar cria o triplo dos postos de trabalho do que o mesmo valor em combustíveis fósseis. Ignoramos a saúde: a poluição do ar custa aos portugueses 6 mil milhões por ano em despesas médicas. E subestimamos a independência: importamos 75% da nossa energia, quando o sol é 100% nacional.
Há, no entanto, uma luz no fim do túnel burocrático. A nova legislação para o autoconsumo simplificou radicalmente os processos para instalações até 30 kW. A tarifa bi-horária finalmente recompensa quem consome de dia, quando o sol brilha. E os fundos europeus do PRR trazem 610 milhões especificamente para renováveis. São passos na direção certa, ainda que dados com a lentidão de quem caminha sobre areia movediça.
O paradoxo português resume-se assim: temos o recurso, temos a tecnologia, temos o dinheiro. Falta-nos apenas a coragem de cortar o cordão umbilical com o século XX. Enquanto outros países já planejam como armazenar o excesso de energia solar em hidrogénio verde, nós ainda discutimos se os painéis "descaracterizam" a paisagem. É como recusar uma herança porque a mala é feia.
Nas próximas semanas, o governo promete apresentar um plano de aceleração solar. Os ambientalistas esperam medidas ousadas, as utilities preparam os seus lobbies, os cidadãos continuam a pagar contas de luz que sobem mais rápido que a temperatura global. O sol, esse, nasce todos os dias sem precisar de subsídios, licenças ou comissões parlamentares. A questão que fica no ar, mais quente que o asfalto em agosto, é simples: quando é que vamos finalmente acordar para ele?
A resposta, como descobri em meses de investigação, está enterrada numa teia burocrática que faria Kafka corar. Um empresário do Alentejo, que pediu para manter o anonimato, mostrou-me a sua pilha de processos: 14 meses para obter licença para uma instalação de 50 kW, 22 entidades diferentes envolvidas, 3.500 páginas de documentação. "Parece que inventámos o sol", ironizou, "e agora temos de pedir autorização para o usar."
Enquanto isso, nas redações dos jornais económicos, os especialistas debatem os números que não fecham. O Plano Nacional de Energia e Clima promete 9 GW de capacidade solar até 2030, mas ao ritmo atual só lá chegaremos em 2047. Os leilões solares, aclamados como revolucionários, entregaram apenas 1,4 GW em três anos. Alguém está a fazer as contas com lápis de cera.
O observador mais atento nota um padrão curioso: as grandes utilities tradicionais continuam a dominar o jogo. Enquanto os pequenos produtores se afogam em papelada, os mesmos de sempre ganham os concursos com margens tão estreitas que levantariam suspeitas noutro qualquer setor. Será coincidência que os mesmos grupos que durante décadas venderam gás e carvão sejam agora os campeões do sol?
Nas ruas, porém, algo está a mudar. As comunidades energéticas começam a brotar como cogumelos após a chuva. Em Serpa, um grupo de agricultores instalou painéis sobre os telhados dos celeiros e agora vende eletricidade à rede. Em Lisboa, um condomínio transformou o seu parque de estacionamento numa central solar que abastece 40 famílias. São histórias de resistência que mostram que, quando o sistema falha, as pessoas inventam o seu próprio sistema.
A tecnologia, essa, não espera por licenças. Os painéis de nova geração já convertem 23% da luz solar em eletricidade, contra os 15% de há uma década. As baterias de lítio caíram 89% em preço desde 2010. E os "agrivoltaicos" - painéis elevados sobre culturas agrícolas - provam que podemos ter sol e sombra ao mesmo tempo. O futuro já chegou, só que ainda não foi distribuído por todos os municípios.
O verdadeiro drama está nos números que ninguém vê. Enquanto discutimos megawatts, esquecemos os empregos: cada milhão investido em solar cria o triplo dos postos de trabalho do que o mesmo valor em combustíveis fósseis. Ignoramos a saúde: a poluição do ar custa aos portugueses 6 mil milhões por ano em despesas médicas. E subestimamos a independência: importamos 75% da nossa energia, quando o sol é 100% nacional.
Há, no entanto, uma luz no fim do túnel burocrático. A nova legislação para o autoconsumo simplificou radicalmente os processos para instalações até 30 kW. A tarifa bi-horária finalmente recompensa quem consome de dia, quando o sol brilha. E os fundos europeus do PRR trazem 610 milhões especificamente para renováveis. São passos na direção certa, ainda que dados com a lentidão de quem caminha sobre areia movediça.
O paradoxo português resume-se assim: temos o recurso, temos a tecnologia, temos o dinheiro. Falta-nos apenas a coragem de cortar o cordão umbilical com o século XX. Enquanto outros países já planejam como armazenar o excesso de energia solar em hidrogénio verde, nós ainda discutimos se os painéis "descaracterizam" a paisagem. É como recusar uma herança porque a mala é feia.
Nas próximas semanas, o governo promete apresentar um plano de aceleração solar. Os ambientalistas esperam medidas ousadas, as utilities preparam os seus lobbies, os cidadãos continuam a pagar contas de luz que sobem mais rápido que a temperatura global. O sol, esse, nasce todos os dias sem precisar de subsídios, licenças ou comissões parlamentares. A questão que fica no ar, mais quente que o asfalto em agosto, é simples: quando é que vamos finalmente acordar para ele?