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O sol que não nasce para todos: os obstáculos inesperados à revolução solar em Portugal

Há uma revolução silenciosa a acontecer nos telhados portugueses, mas nem todos conseguem ouvi-la. Enquanto o governo celebra números recorde de instalações fotovoltaicas, há uma realidade paralela que poucos se atrevem a contar: a daqueles que ficaram pelo caminho, vítimas de burocracias kafkianas, custos ocultos e promessas que se desvaneceram ao primeiro contacto com a realidade.

Na pequena aldeia alentejana de São Miguel do Pinheiro, Maria dos Anjos, 68 anos, mostra-me orgulhosamente os painéis que instalou há oito meses. "Pensei que ia poupar na eletricidade, mas agora tenho mais uma conta para pagar", diz, enquanto me entrega uma pasta com dezenas de documentos. O empréstimo para a instalação supera em 30% o que lhe prometeram, e os benefícios demoraram seis meses a chegar. A sua história repete-se em centenas de lares portugueses, onde a transição energética chegou com letra pequena que ninguém leu.

Enquanto isso, nos corredores luminosos dos ministérios em Lisboa, os técnicos falam de metas ambiciosas: Portugal quer atingir 80% de energia renovável até 2030, com a solar a liderar essa corrida. Os números oficiais pintam um quadro cor-de-rosa: capacidade instalada quadruplicada nos últimos três anos, investimentos milionários, criação de milhares de empregos. Mas quem percorre o terreno encontra uma narrativa diferente, cheia de nuances e contradições.

O problema começa na papelada. Um estudo encomendado pela Associação Portuguesa de Energias Renováveis revela que o tempo médio para obter todas as autorizações necessárias para uma instalação doméstica varia entre quatro a nove meses, dependendo do município. Em alguns concelhos do interior, chega a demorar mais de um ano. "É como pedir autorização para plantar uma árvore no seu próprio quintal", ironiza um instalador de Bragança que prefere manter o anonimato.

Mas a complexidade burocrática é apenas a ponta do iceberg. As redes de distribuição, herdeiras de um sistema centralizado pensado para grandes centrais, mostram-se incapazes de absorver o excesso de produção nos momentos de pico. O resultado? Milhares de portugueses produzem energia que não conseguem injetar na rede, perdendo assim parte do retorno do seu investimento.

A questão das baterias de armazenamento constitui outro capítulo desta saga. Prometidas como a solução milagrosa, revelaram-se o calcanhar de Aquiles de todo o sistema. Os preços permanecem proibitivos para a maioria das famílias, e a tecnologia ainda não atingiu a maturidade necessária. "Comprei baterias há dois anos e já perdem 40% da capacidade", queixa-se um pequeno empresário de Viseu.

Nos centros urbanos, a situação é ainda mais complexa. Os condomínios enfrentam desafios quase insuperáveis para implementar soluções coletivas. As assembleias transformam-se em campos de batalha onde se discutem desde a estética dos painéis até à distribuição dos custos e benefícios. Em Lisboa, conheci um prédio onde as discussões sobre energia solar já duram três anos sem chegar a consenso.

O setor agrícola, que poderia ser um dos grandes beneficiários desta revolução, enfrenta os seus próprios demónios. Os custos de instalação em terrenos agrícolas são significativamente superiores, e os benefícios fiscais não chegam para compensar. Muitos agricultores preferem alugar os seus terrenos a grandes produtores de energia, criando uma nova forma de renda, mas perdendo a oportunidade de se tornarem produtores.

Enquanto investigava esta reportagem, deparei-me com um fenómeno curioso: a emergência de um mercado paralelo de equipamentos. Painéis usados, inversores recondicionados, baterias de origem duvidosa – uma economia subterrânea que floresce à sombra dos preços oficiais. As autoridades fecham os olhos, conscientes de que sem esta válvula de escape, muitos portugueses nunca teriam acesso à energia solar.

As associações de consumidores começam agora a levantar a voz. Recebem diariamente dezenas de queixas sobre contratos com cláusulas abusivas, publicidade enganosa e serviços pós-venda inexistentes. "As pessoas assinam sem perceber que estão a contrair empréstimos a 20 anos", alerta a presidente de uma dessas associações.

Mas nem tudo são más notícias. Conheci histórias de sucesso que mostram o potencial transformador desta tecnologia. Em Odemira, uma cooperativa de cidadãos criou uma central solar comunitária que abastece 120 famílias. Em Guimarães, um hospital público reduziu a sua fatura energética em 60% através de uma combinação inteligente de painéis e eficiência energética.

O futuro, contudo, reserva novos desafios. A próxima geração de painéis solares, mais eficientes e baratos, chegará ao mercado dentro de dois a três anos, tornando obsoletos muitos dos sistemas atualmente instalados. E a concorrência das grandes utilities ameaça engolir os pequenos produtores, recentralizando um sistema que se pretendia descentralizado.

O que esta investigação revela é que a transição energética, em Portugal como noutros países, é um processo muito mais complexo do que os discursos oficiais sugerem. Requer não apenas tecnologia e investimento, mas também mudanças profundas nos modelos de governança, na regulação e, sobretudo, na forma como encaramos a nossa relação com a energia.

O sol continua a nascer para todos, mas a sua energia ainda não chegou a todos da mesma forma. E enquanto não resolvermos estas assimetrias, a revolução solar permanecerá incompleta, beneficiando alguns à custa de muitos outros que ficaram pelo caminho.

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