Num café de Lisboa, Maria, 68 anos, inclina-se para a frente, o rosto contraído num esforço visível. 'Desculpe, pode repetir?' A cena repete-se três vezes antes de desistir, sorrindo com embaraço enquanto afasta o olhar. Esta não é uma interação isolada - é um retrato do que especialistas começam a chamar de 'epidemia silenciosa': a perda auditiva que afeta cerca de 30% dos portugueses acima dos 65 anos, segundo dados da Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia.
A ironia é cruel: nunca estivemos tão rodeados de som, mas nunca tantos viveram num mundo progressivamente mais silencioso. Das buzinas no trânsito de Porto aos fados em Alfama, o tecido sonoro português está a perder ouvintes. E o problema não é apenas dos idosos: jovens que usam auriculares a volumes perigosos, trabalhadores expostos a ruído industrial, até mesmo pais que não ouvem os primeiros sons dos filhos - a surdez não discrimina por idade.
O que mais preocupa os especialistas é o efeito dominó. 'A audição não é um sentido isolado', explica Dra. Sofia Mendes, audiologista no Hospital de Santa Maria. 'Quando se perde, arrasta consigo a socialização, a saúde mental, até a cognição.' Estudos mostram que a perda auditiva não tratada aumenta em 50% o risco de demência e triplica a probabilidade de depressão. É uma espiral perigosa: quanto menos se ouve, mais se isola; quanto mais isolado, menos estímulo cerebral recebe.
Nas farmácias e centros de saúde, os aparelhos auditivos acumulam-se nas prateleiras como testemunhos mudos de um paradoxo: a tecnologia nunca foi tão avançada, mas o estigma permanece. 'As pessoas associam aparelhos auditivos à velhice, à incapacidade', conta João Silva, técnico de audiologia há 15 anos. 'Prefiram dizer que não ouvem bem porque estão distraídos ou que o outro fala baixo.' Este tabu tem custos reais - em média, os portugueses esperam sete anos entre perceberem o problema e procurarem ajuda.
Enquanto isso, nas escolas, uma geração cresce com os ouvidos em risco. O estudo 'Ouvidos em Perigo', realizado pela Universidade do Minho, revelou que 65% dos adolescentes portugueses usam auriculares acima dos 85 decibéis - o limite de segurança para exposição prolongada. 'É como ter um martelo pneumático ao lado do ouvido oito horas por dia', compara o investigador principal, Dr. Rui Carvalho. Os efeitos podem não ser imediatos, mas são cumulativos: danos nas células ciliadas do ouvido interno que nunca se regeneram.
No Alentejo, onde o silêncio é uma paisagem sonora, encontramos histórias diferentes. 'Aqui ouvimos o vento nas azinheiras, os passarinhos, o próprio silêncio', diz António, 72 anos, agricultor reformado. 'Na cidade, é tudo barulho até não se ouvir nada.' A observação é mais profunda do que parece: a poluição sonora urbana não causa apenas stress - mascara os primeiros sinais de perda auditiva, adiando diagnósticos.
As soluções existem, mas exigem mudança cultural. Programas de rastreio auditivo em empresas, campanhas de sensibilização nas escolas, desmistificação dos aparelhos auditivos - tudo está ao alcance. Na Finlândia, onde os testes auditivos são rotina desde a infância, a taxa de utilização de auxiliares auditivos quando necessário é o dobro da portuguesa.
O futuro, contudo, traz esperança. Aplicações que transformam smartphones em audiômetros caseiros, aparelhos quase invisíveis que se conectam diretamente a telemóveis, até implantes cocleares com inteligência artificial que aprendem a filtrar sons - a revolução tecnológica está a chegar aos ouvidos portugueses. Mas a tecnologia só funciona se vier acompanhada de uma revolução social: a normalização da perda auditiva como condição comum, não como defeito.
Na próxima vez que vir alguém pedir para repetir uma frase, lembre-se: pode não ser distração. Pode ser um grito silencioso por ajuda, um pedido para que o mundo não se afaste aos poucos. Porque no fim, a audição não é apenas sobre sons - é sobre conexão. E numa sociedade cada vez mais barulhenta, não podemos permitir que o silêncio seja a última palavra.
O som do silêncio: quando a perda auditiva se torna uma epidemia invisível em Portugal