Num país onde o fado se entoa com o coração e o mar se escuta nas praias algarvias, há um som que está a desaparecer silenciosamente. Não é o canto dos pássaros nos montes transmontanos, nem o tilintar das chávenas nos cafés de Lisboa. É o som da própria vida, que milhões de portugueses estão a perder sem sequer darem conta.
Nas últimas semanas, percorri clínicas auditivas desde Braga até Faro, conversei com especialistas que preferem trabalhar nas sombras, e descobri uma realidade que poucos ousam discutir abertamente. A perda auditiva em Portugal não é apenas um problema médico - é uma epidemia silenciosa que está a moldar a nossa sociedade de formas inesperadas.
Encontrei Maria, 68 anos, no seu apartamento no Porto. Durante três anos, ela pensou que os vizinhos tinham parado de a cumprimentar no elevador. "Sentia-me invisível", confessou-me, enquanto ajustava discretamente o seu aparelho auditivo. Só quando a filha a levou a uma consulta descobriu que o problema não era a frieza alheia, mas os seus próprios ouvidos. Histórias como a de Maria repetem-se por todo o país, num fenómeno que os especialistas começam a chamar de "isolamento acústico".
O que mais me surpreendeu não foi a dimensão do problema, mas a revolução tecnológica que está a acontecer debaixo dos nossos narizes. Os aparelhos auditivos modernos não são os dispositivos volumosos que os nossos avós usavam. São mini-computadores que se conectam a smartphones, traduzem línguas em tempo real e até monitorizam a frequência cardíaca. Na clínica do Dr. António Silva em Coimbra, testei um modelo que me permitiu ouvir uma conversa a 15 metros de distância, enquanto filtrava o ruído do trânsito da cidade.
Mas esta tecnologia tem um preço - e não falo apenas do custo financeiro. Durante a minha investigação, descobri que menos de 30% dos portugueses com perda auditiva usam aparelhos. O estigma permanece forte, especialmente entre os homens. "É mais fácil admitir problemas de visão do que de audição", explicou-me a psicóloga Carla Mendes, que acompanha pacientes em processo de adaptação. "A surdez ainda é associada à velhice e à incapacidade, quando na realidade afeta cada vez mais jovens devido aos hábitos modernos."
Falando em jovens, encontrei um fenómeno curioso nas universidades. Estudantes que passam horas com auriculares estão a desenvolver perdas auditivas precoces, mas em vez de procurarem ajuda, simplesmente aumentam o volume. É um ciclo vicioso que preocupa os otorrinolaringologistas. "Estamos a criar uma geração que aos 40 anos terá a audição de um septuagenário", alertou-me o Dr. Rui Costa, do Hospital de Santa Maria.
A solução, contudo, pode estar a surgir de onde menos se espera. Startups portuguesas estão a desenvolver aparelhos auditivos com tecnologia de inteligência artificial que aprendem com os ambientes do utilizador. Conversei com a equipa da HearTech, uma empresa de Braga que criou um dispositivo que não só amplifica os sons, como os interpreta. "Imagine estar num restaurante barulhento e o aparelho destacar apenas as vozes da sua mesa", explicou-me o engenheiro Miguel Andrade, mostrando-me um protótipo do tamanho de uma ervilha.
O sistema nacional de saúde tem tentado acompanhar esta evolução, mas os tempos de espera para consultas especializadas chegam a ultrapassar um ano em algumas regiões. Enquanto isso, farmácias e óticas oferecem testes auditivos gratuitos, criando um mercado paralelo que nem sempre segue os padrões médicos recomendados. "É preciso cuidado", advertiu-me a Dra. Isabel Monteiro, presidente da Associação Portuguesa de Audiologistas. "Um aparelho mal ajustado pode causar mais danos do que a própria perda auditiva."
O que mais me marcou nesta investigação foi descobrir como a audição está ligada à nossa identidade cultural. Num café em Alfama, observei um grupo de idosos que, graças aos seus aparelhos modernos, conseguiam acompanhar uma conversa enquanto o fadista cantava ao fundo. "Antes, escolhia entre ouvir a música ou os meus amigos", contou-me o Sr. Jorge, 72 anos. "Agora posso desfrutar de ambos."
À medida que a população portuguesa envelhece, a questão da saúde auditiva tornará cada vez mais premente. As estimativas apontam para que, em 2030, um terço dos portugueses sofra de algum grau de perda auditiva. O desafio não será apenas tecnológico ou médico, mas social: como criar uma sociedade inclusiva para quem ouve o mundo de forma diferente?
Na minha última noite de reportagem, sentei-me na esplanada de um café em Évora, com os ouvidos atentos. Ouvi o tilintar das chávenas, o riso das crianças, o sussurro das conversas à minha volta. E percebi que cada um desses sons conta uma história - histórias que merecem ser ouvidas por todos, sem exceção. A revolução dos aparelhos auditivos não é apenas sobre tecnologia; é sobre reconectar pessoas às narrativas que compõem o tecido da nossa sociedade.
O futuro da audição em Portugal está a ser escrito agora, não nos laboratórios, mas nas ruas, nas casas, nos cafés onde a vida acontece. Cabe a cada um de nós decidir se queremos fazer parte dessa conversa - ou se preferimos ficar em silêncio.
O som que ninguém ouve: a revolução silenciosa dos aparelhos auditivos em Portugal