Nos últimos meses, um fenómeno tem vindo a ganhar terreno no panorama financeiro português, quase sem que se desse por ele. Enquanto os holofotes mediáticos se concentram nas taxas de juro do crédito habitação ou nos fundos europeus, o crédito ao consumo tem registado um crescimento surpreendente que merece uma análise mais atenta.
Os dados mais recentes do Banco de Portugal revelam que o volume de crédito ao consumo aumentou cerca de 8% no último ano, um ritmo que contrasta com a moderação noutros tipos de financiamento. Este movimento não é aleatório: reflete mudanças profundas nos comportamentos de consumo e na forma como as famílias portuguesas gerem o seu orçamento familiar.
O que está a alimentar este crescimento? Por um lado, a inflação tem pressionado os orçamentos familiares, levando muitos portugueses a recorrerem ao crédito para manterem o seu nível de vida. Por outro, a oferta tornou-se mais agressiva, com instituições financeiras a apostarem fortemente neste segmento através de campanhas publicitárias apelativas e condições aparentemente vantajosas.
Mas há um factor menos visível que está a impulsionar esta tendência: a digitalização. As fintechs e os bancos digitais têm simplificado drasticamente o processo de obtenção de crédito, reduzindo os tempos de aprovação de semanas para horas ou mesmo minutos. Esta facilidade de acesso, embora conveniente, traz consigo riscos que não podem ser ignorados.
Os especialistas contactados para esta análise alertam para o perigo da normalização do endividamento. "Estamos a assistir a uma banalização do crédito que pode ter consequências graves a médio prazo", afirma Maria Santos, economista especializada em finanças pessoais. "Muitas famílias estão a acumular dívidas sem uma estratégia clara de pagamento, confiando que o futuro resolverá os problemas do presente."
Um aspecto particularmente preocupante é o crescimento do crédito para financiar despesas do dia-a-dia. Diferentemente do que acontecia no passado, quando o crédito ao consumo era maioritariamente usado para aquisições específicas como automóveis ou electrodomésticos, hoje uma parte significativa serve para cobrir custos correntes como supermercado, combustível ou contas da casa.
Esta realidade coloca questões importantes sobre a sustentabilidade financeira das famílias portuguesas. Com os juros a subirem em todo o mundo, o custo do serviço da dívida tende a aumentar, podendo criar situações de sobre-endividamento que serão difíceis de resolver.
No entanto, nem tudo são más notícias. O crédito responsável continua a ser uma ferramenta útil para muitas famílias, permitindo antecipar compras necessárias ou investir em educação e formação. O desafio está em encontrar o equilíbrio entre o acesso ao crédito e a protecção dos consumidores.
As autoridades reguladoras já começaram a mover-se neste sentido. O Banco de Portugal tem vindo a apertar as regras de concessão de crédito, exigindo análises mais rigorosas da capacidade de pagamento dos clientes. Paralelamente, tem aumentado a fiscalização das práticas comerciais das instituições financeiras.
Mas a regulação por si só não chega. É fundamental que os portugueses desenvolvam uma maior literacia financeira, compreendendo os riscos associados ao crédito e aprendendo a distinguir entre necessidades reais e desejos imediatos. As escolas, as associações de consumidores e os próprios media têm um papel crucial a desempenhar nesta educação.
O que nos espera no futuro próximo? Tudo indica que o crescimento do crédito ao consumo vai continuar, embora a um ritmo mais moderado. A combinação entre pressões inflacionistas, expectativas de consumo e oferta abundante de crédito cria um cenário propício para esta expansão.
No entanto, os sinais de alerta estão acesos. O aumento das taxas de incumprimento, ainda que moderado, e o crescimento do número de processos de insolvência familiar sugerem que nem todos estão a gerir bem o seu endividamento.
A solução passa por um equilíbrio delicado: por um lado, manter o acesso ao crédito como instrumento de liberdade económica; por outro, garantir que esse acesso não se transforma numa armadilha para as famílias mais vulneráveis.
Como consumidores, cabe-nos a nós fazer escolhas informadas e responsáveis. Como sociedade, temos o dever de criar mecanismos de protecção que evitem situações de sobre-endividamento. O crédito ao consumo não é um inimigo, mas precisa de ser encarado com a seriedade que merece.
O boom silencioso do crédito ao consumo é, no fundo, um espelho das transformações que estão a ocorrer na economia portuguesa. Reflecte tanto as oportunidades como os desafios que enfrentamos num mundo em rápida mudança. Cabe-nos a nós garantir que esta ferramenta financeira serve para construir um futuro mais próspero, não para comprometer o que já conseguimos alcançar.
Crédito ao consumo: o boom silencioso que está a mudar os hábitos financeiros dos portugueses
