Num café de Lisboa, Maria, 42 anos, mãe de dois adolescentes, mostra-nos o ecrã do telemóvel com três contratos de crédito pessoal abertos. 'Um foi para o computador da escola, outro para o carro que avariou, e este último... nem me lembro bem', confessa, enquanto os dedos deslizam sobre as notificações de débitos diretos. A sua história não é única. Em Portugal, segundo dados do Banco de Portugal, o crédito ao consumo cresceu 7,2% no último ano, atingindo 18,4 mil milhões de euros. Mas por detrás destes números há uma realidade complexa, onde famílias como a de Maria navegam num labirinto de taxas, prazos e condições que poucos compreendem na totalidade.
A selva das taxas de juro é o primeiro obstáculo. Enquanto os anúncios prometem 'taxas a partir de 5,9%', a verdade é que a média real ronda os 10,3%, segundo a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor. A diferença não é acidental. 'As instituições financeiras jogam com a psicologia do consumidor', explica Pedro Silva, economista especializado em finanças pessoais. 'Mostram a taxa mais baixa possível nos anúncios, mas depois aplicam condições que elevam o custo real para a maioria dos clientes.'
Nos bastidores deste mercado, descobrimos que as comissões escondidas representam até 30% do custo total de alguns créditos. Desde comissões de processamento até taxas por antecipação de pagamento, o consumidor médio desconhece metade dos encargos que assina. 'É como comprar um bilhete de avião e só depois descobrir que tem de pagar pela bagagem, pelo assento e até pelo ar condicionado', compara Ana Lopes, que trabalhou durante anos no departamento de crédito de um banco português.
A digitalização trouxe novos perigos. As plataformas online de crédito instantâneo multiplicaram-se, prometendo aprovação em 15 minutos. O que não dizem é que estas operações, muitas vezes realizadas fora do sistema bancário tradicional, podem ter taxas anuais equivalentes superiores a 20%. 'É o wild west das finanças pessoais', alerta Marco Teixeira, autor de um estudo sobre fintechs de crédito. 'A facilidade de acesso esconde riscos que muitos só percebem quando já estão endividados.'
Nas periferias das grandes cidades, o fenómeno assume contornos sociais preocupantes. As lojas de crédito pessoal substituíram as antigas mercearias em bairros como o Casal Ventoso ou o Cerco do Porto. 'Aqui entra-se para pedir 500 euros e sai-se com um contrato de 3000', relata Carlos Mendes, assistente social que acompanha famílias sobre-endividadas. 'As letras são tão pequenas que nem com lupa se lêem, e os vendedores têm quotas a cumprir.'
O drama do sobre-endividamento atinge níveis alarmantes. Segundo a DECO, mais de 12% das famílias portuguesas têm dificuldade em cumprir os seus compromissos financeiros. 'Não estamos a falar de luxos, mas de necessidades básicas', sublinha Sofia Ramos, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobre-endividado. 'Créditos para electrodomésticos essenciais, para tratamentos dentários, para reparações na casa que não podem adiar.'
A regulação tenta acompanhar esta realidade em aceleração. A nova diretiva europeia sobre crédito ao consumo, que entra em vigor em 2024, promete maior transparência. Mas especialistas duvidam da sua eficácia prática. 'As instituições financeiras são mais rápidas a encontrar brechas do que os reguladores a fechá-las', comenta João Pereira, ex-inspetor do Banco de Portugal. 'Enquanto se discute a letra da lei, nas ruas continuam a surgir produtos cada vez mais criativos para contornar as regras.'
Nas escolas, começam a surgir programas de literacia financeira, mas são gotas num oceano de desconhecimento. 'Os jovens aprendem mais sobre créditos no TikTok do que nas aulas', observa Inês Monteiro, professora de economia numa escola secundária de Setúbal. 'Os influencers financeiros promovem cartões de crédito como se fossem bilhetes para a liberdade, sem explicar as armadilhas.'
O futuro deste mercado parece bifurcar-se entre dois caminhos. De um lado, a promessa da inteligência artificial para avaliação mais justa do risco de crédito, que poderia baixar taxas para bons pagadores. Do outro, o perigo da segmentação extrema, onde algoritmos decidem quem tem acesso a crédito barato e quem fica condenado a taxas exorbitantes. 'Estamos a construir um sistema financeiro paralelo invisível', adverte Daniela Costa, investigadora em ética financeira. 'Os dados dos nossos telemóveis valem mais do que o nosso historial bancário.'
Enquanto isso, nas cozinhas portuguesas, continuam as contas feitas à mão, os recibos espalhados pela mesa, as dúvidas sobre quanto realmente se deve. Maria, a nossa protagonista inicial, aprendeu a lição da maneira mais dura. 'Agora leio tudo, pergunto três vezes, e se não perceber, não assino', diz, enquanto guarda os contratos numa pasta vermelha que chama de 'a minha dívida'. A sua história, multiplicada por milhares, desenha o retrato de um país que aprende, lentamente, a navegar nas águas turbulentas do crédito ao consumo.
O labirinto dos créditos ao consumo: como as famílias portuguesas navegam numa selva de taxas e letras pequenas