O labirinto fiscal português: como as empresas navegam num sistema complexo e em constante mudança

O labirinto fiscal português: como as empresas navegam num sistema complexo e em constante mudança
Num pequeno escritório no centro de Lisboa, um contabilista de cabelos grisalhos abre o terceiro café da manhã enquanto desliza entre ecrãs de computador. São 9h15 e já recebeu três chamadas de clientes a perguntar sobre as últimas alterações ao regime do IVA. Esta cena repete-se diariamente em milhares de escritórios por todo o país, onde profissionais tentam desvendar o que muitos consideram ser um dos sistemas fiscais mais complexos da Europa.

Portugal tem vindo a acumular camadas de legislação fiscal desde a década de 1980, criando um labirinto onde até os mais experientes se podem perder. O Código do IVA, por exemplo, sofreu mais de 200 alterações desde a sua criação. "É como tentar ler um livro onde alguém muda os capítulos a meio da leitura", desabafa Miguel Santos, consultor fiscal com 25 anos de experiência.

A complexidade não se limita às grandes corporações. As pequenas e médias empresas, que representam 99,9% do tecido empresarial português, gastam em média 260 horas por ano apenas a cumprir obrigações fiscais. Um estudo recente da OCDE coloca Portugal no top 5 dos países com maior carga burocrática fiscal para PMEs.

Mas há luz no fim do túnel. Nos últimos dois anos, a Autoridade Tributária tem vindo a implementar sistemas de faturação eletrónica que prometem simplificar processos. O problema? Muitas empresas, especialmente as mais pequenas, não têm recursos para acompanhar a transição digital. "Estamos perante um paradoxo: a tecnologia que deveria simplificar está a criar novas barreiras", observa Carla Mendes, especialista em transformação digital.

O setor do turismo ilustra bem estes desafios. Um hotel em Lisboa pode ter de lidar com diferentes taxas de IVA para alojamento, restaurante, spa e atividades turísticas. Quando se junta a isto os regimes especiais para as regiões autónomas, o resultado é um quebra-cabeças que exige especialização constante.

A situação torna-se particularmente delicada para startups e empresas tecnológicas. Muitas operam em setores que nem sequer existiam quando a maioria das leis fiscais foi escrita. "Tentamos encaixar modelos de negócio inovadores em moldes legais do século XX", explica Sofia Ramos, fundadora de uma fintech.

Os especialistas apontam para a necessidade de uma reforma estrutural, não apenas de remendos pontuais. "Precisamos de menos complexidade e mais previsibilidade", defende o economista Rui Pires. "As empresas não precisam de menos impostos, precisam de um sistema que compreendam."

Enquanto isso, no terreno, a criatividade portuguesa manifesta-se. Surgiram dezenas de startups dedicadas a simplificar a gestão fiscal, desde software de automatização a serviços de consultoria especializada. "Os portugueses são especialistas em encontrar soluções para problemas complexos", brinca um empreendedor do setor.

O futuro poderá passar pela inteligência artificial e machine learning, capazes de analisar milhares de páginas de legislação em segundos. Várias empresas já testam sistemas que alertam automaticamente para alterações legais relevantes para o seu negócio.

Mas a verdadeira mudança, alertam os especialistas, tem de ser cultural. "Precisamos de passar de uma mentalidade de controlo para uma de facilitão", argumenta um antigo inspetor tributário que prefere manter o anonimato. "Confiar mais nas empresas e focar-nos nos casos de fraude evidente."

Enquanto a reforma não chega, os profissionais continuam a sua dança diária com a burocracia. No escritório do centro de Lisboa, o contabilista já prepara a quarta chávena de café. São 11h30 e acaba de receber um email sobre mais uma alteração legislativa. "Pelo menos o café continua com o mesmo sabor", ri-se, enquanto abre o documento.

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