Num escritório com vista para o Tejo, um gestor de risco de um dos maiores bancos portugueses descreve-me, com um sorriso cansado, o que chama de "alquimia financeira". "Transformamos risco em oportunidade", diz, enquanto mostra um gráfico complexo no ecrã do computador. "O crédito deixou de ser apenas empréstimo. Agora é produto, estratégia, quase filosofia." Esta transformação silenciosa está a redefinir a relação dos portugueses com o dinheiro, enquanto as instituições financeiras descobrem novas formas de lucrar com a necessidade alheia.
Nos últimos meses, uma investigação cruzando dados do Banco de Portugal, relatórios de instituições financeiras e dezenas de entrevistas revela um padrão preocupante. Os bancos estão a criar produtos de crédito cada vez mais complexos, muitas vezes mascarados de soluções simples. Os créditos pessoais, por exemplo, já não são apenas empréstimos a prazo. Agora vêm com seguros embutidos, taxas de manutenção disfarçadas e cláusulas que permitem alterações unilaterais das condições.
"É como comprar um carro e descobrir depois que precisa de pagar extra pelas rodas", explica-me Marta Silva, economista que tem estudado o fenómeno. "Os consumidores assinam contratos de 15 páginas sem perceber que estão a aceitar condições que podem mudar sem o seu consentimento." A especialista mostra-me casos concretos: famílias que viram as prestações do crédito habitação aumentar 30% devido a cláusulas indexadas a índices que nunca lhes foram explicados.
Mas a inovação não para nos produtos tradicionais. O verdadeiro terreno fértil para esta reinvenção do crédito está nas fintechs e nas parcerias entre bancos e empresas de tecnologia. Através de aplicações que prometem "crédito instantâneo" ou "empréstimos sem burocracia", os portugueses estão a ser levados a contrair dívidas com taxas de juro que chegam aos 18%, muitas vezes sem perceber o custo real da operação.
"Há uma normalização do endividamento que é preocupante", alerta Pedro Mendes, presidente de uma associação de defesa do consumidor. "As campanhas publicitárias vendem o crédito como solução mágica para todos os problemas, desde férias a emergências médicas. O que não dizem é que muitos destes produtos são armadilhas financeiras."
A investigação revela ainda uma prática crescente: a venda cruzada de produtos de crédito. Quando um cliente vai a um balcão pedir informação sobre um depósito a prazo, sai muitas vezes com uma proposta de crédito pessoal. Quando procura um seguro de vida, é confrontado com ofertas de cartões de crédito. Esta estratégia agressiva de venda tem levado a situações absurdas, como reformados com três cartões de crédito ativos ou jovens com mais dívidas do que rendimento anual.
Os dados oficiais contam uma história que as campanhas publicitárias omitem. Segundo o Banco de Portugal, o volume de crédito ao consumo aumentou 12% no último ano, enquanto os salários médios cresceram apenas 3%. Esta disparidade significa que os portugueses estão a endividar-se mais rápido do que a sua capacidade de pagamento aumenta. E o pior: grande parte deste endividamento não é para investimento ou educação, mas para consumo imediato.
"Estamos a criar uma geração de escravos do crédito", adverte um antigo banqueiro que pede anonimato. "Os jovens começam a sua vida adulta já endividados, com cartões de crédito que usam para pagar despesas básicas. Quando chegam aos 30 anos, já acumularam dívidas que levarão décadas a pagar."
Mas há luz no fim do túnel. Algumas instituições começam a adotar práticas mais transparentes, pressionadas por reguladores e por consumidores mais informados. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários anunciou recentemente que vai intensificar a fiscalização aos produtos de crédito complexos. E associações de consumidores estão a desenvolver ferramentas para ajudar os portugueses a comparar ofertas e a perceber o custo real do dinheiro emprestado.
O desafio, segundo os especialistas, é educar financeiramente uma população que cresceu a ver o crédito como solução fácil. "Precisamos de ensinar que o dinheiro dos outros sempre custa mais do que o nosso", defende Marta Silva. "E que por trás de cada 'sim' fácil há um contrato que pode comprometer o futuro."
Enquanto isso, nas salas de reuniões dos bancos, a alquimia continua. Novos produtos são desenhados, novas estratégias de venda são testadas, novas formas de lucrar com a dívida são inventadas. A pergunta que fica é: até quando os portugueses conseguirão suportar o peso desta reinvenção do crédito?
O lado obscuro do crédito: como os bancos portugueses estão a reinventar a dívida