Num canto discreto de Lisboa, uma startup com menos de dez funcionários está a processar mais pedidos de crédito pessoal do que um banco tradicional com centenas de colaboradores. Esta não é uma história sobre tecnologia, mas sobre como o acesso ao dinheiro está a mudar de mãos - e de regras - diante dos nossos olhos, enquanto os portugueses continuam a navegar num mar de dívidas que atingiu níveis históricos.
Os números do Banco de Portugal são claros: o crédito ao consumo cresceu 7,3% no último ano, com os portugueses a deverem mais de 18 mil milhões de euros em empréstimos pessoais. Mas o que estes dados não revelam é a revolução silenciosa que está a acontecer nos bastidores, onde plataformas digitais estão a redefinir quem tem acesso ao crédito e em que condições.
Enquanto os bancos tradicionais continuam a exigir fiadores e a analisar históricos de crédito com lupa, as fintechs estão a usar algoritmos que analisam desde padrões de gastos até à regularidade com que se carrega o telemóvel. "Estamos a ler entre as linhas do comportamento financeiro," confessa-nos um fundador de uma destas startups, que prefere manter o anonimato. "Onde os bancos veem risco, nós vemos padrões."
Esta mudança de paradigma está a criar duas realidades paralelas no mercado de crédito português. De um lado, os consumidores com históricos imaculados que conseguem taxas de juro abaixo dos 6%. Do outro, uma multidão silenciosa que, excluída do sistema bancário tradicional, recorre a plataformas online onde as taxas podem ultrapassar os 20%.
O problema, alertam especialistas, é que esta democratização do crédito tem um preço oculto. "Estamos a normalizar o endividamento de forma perigosa," avisa Maria Santos, economista especializada em finanças comportamentais. "As aplicações tornam o processo tão simples como encomendar comida, mas a dívida fica."
Nos últimos meses, surgiram casos preocupantes de "crédito em cascata" - situações em que consumidores contraem novos empréstimos para pagar os anteriores, criando uma espiral de dívida alimentada pela facilidade de acesso. Uma investigação do Jornal Económico revelou que algumas plataformas usam dark patterns no design das suas aplicações, tornando quase invisível a opção de recusar seguros ou produtos adicionais.
Mas há também histórias de sucesso. Pedro, designer gráfico de 32 anos, conseguiu financiar a sua formação avançada através de uma plataforma de crédito educativo que não exigia garantias. "Os bancos riram-se quando lhes mostrei o meu projeto," conta. "Aqui, avaliaram o meu potencial, não apenas o meu passado."
Esta dualidade reflete um mercado em transição, onde a inovação tecnológica avança mais rápido do que a regulação. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários já anunciou que está a preparar novas diretrizes para o crédito digital, mas especialistas alertam que o processo é lento face à velocidade das mudanças.
Enquanto isso, nas periferias das cidades portuguesas, assiste-se a um fenómeno curioso: lojas de eletrodomésticos que funcionam como pontos de acesso físico a plataformas de crédito digital, ajudando uma geração menos familiarizada com tecnologia a aceder a estes serviços. São os novos intermediários de uma revolução que promete inclusão, mas que precisa de olhos bem abertos.
O futuro do crédito em Portugal está a ser escrito em código, mas a sua história continua a ser humana. Cabe aos consumidores, reguladores e à própria indústria garantir que esta nova era de acesso ao dinheiro não se transforme numa armadilha digital, mas sim numa verdadeira porta para oportunidades.
Num país que ainda carrega as cicatrizes da última crise financeira, a lição é clara: a inovação deve servir as pessoas, não o contrário. E nesse equilíbrio delicado entre acesso e responsabilidade, está a definir-se o próximo capítulo das finanças portuguesas.
O lado oculto do crédito ao consumo: como as fintechs estão a reescrever as regras do jogo