Nos últimos meses, enquanto os portugueses se debatem com a inflação e o custo de vida, os bancos nacionais têm estado a desenhar uma nova cartografia do crédito ao consumo. Não se trata apenas de mais empréstimos pessoais ou cartões de crédito. Estamos perante uma transformação silenciosa, quase invisível nos comunicados oficiais, mas que está a moldar o futuro financeiro de milhares de famílias.
Nos corredores das sedes bancárias em Lisboa e Porto, os departamentos de risco têm estado mais ocupados do que nunca. A estratégia? Transformar dívidas problemáticas em produtos financeiros repaginados. Em vez de simples renegociações, os bancos estão a criar pacotes híbridos que misturam crédito consolidado com seguros e produtos de investimento de baixo risco. O objetivo é claro: manter os clientes endividados, mas dentro de parâmetros controláveis.
Esta abordagem tem um nome técnico pouco conhecido fora dos círculos financeiros: 'gestão ativa de carteiras de crédito deteriorado'. Traduzindo para português corrente, significa que os bancos estão a agrupar clientes com dificuldades de pagamento e a oferecer-lhes soluções padronizadas que, na prática, prolongam o tempo de endividamento mas reduzem o risco de incumprimento total.
O fenómeno é particularmente visível nos créditos automóvel e nos empréstimos para obras. Dados internos de três grandes bancos portugueses, a que tivemos acesso, mostram que cerca de 30% dos novos contratos nestas categorias são, na verdade, reestruturações de dívidas antigas. Os clientes nem sempre percebem que estão a trocar uma dívida por outra, muitas vezes com prazos mais longos e juros ligeiramente mais baixos, mas com comissões adicionais que compensam os bancos.
A verdadeira revolução, contudo, está a acontecer na forma como os bancos estão a usar tecnologia para prever comportamentos de pagamento. Algoritmos desenvolvidos por startups portuguesas de fintech estão a ser implementados para analisar padrões de gastos, histórico de pagamentos e até atividade nas redes sociais. O resultado? Ofertas de crédito personalizadas que parecem feitas à medida, mas que na realidade são armadilhas matemáticas desenhadas para maximizar a rentabilidade do banco.
Um exemplo concreto: o caso da 'linha de crédito flexível' que um banco nacional lançou no início do ano. Prometia taxas fixas durante seis meses e depois variáveis conforme o comportamento do cliente. O que os folhetos não explicavam é que o algoritmo que define a taxa variável considera fatores como a frequência com que o cliente consulta a aplicação móvel do banco ou o número de transferências mensais. Quem está mais atento às suas finanças acaba por pagar mais.
Esta nova realidade tem implicações profundas para a literacia financeira dos portugueses. Os produtos tornaram-se tão complexos que mesmo advogados especializados em direito bancário confessam dificuldade em entender todas as cláusulas. As letras pequenas já não cabem numa página - espalham-se por documentos digitais interligados que poucos clientes leem na íntegra.
O Banco de Portugal tem acompanhado estas tendências com preocupação crescente. Fontes próximas da supervisão bancária confirmam que estão em análise novas regras para simplificar os contratos de crédito ao consumo. O desafio é equilibrar a inovação financeira com a proteção dos consumidores, num setor que representa mais de 20 mil milhões de euros em empréstimos ativos.
Enquanto isso, nas agências bancárias por todo o país, os gestores de conta recebem formação intensiva em técnicas de venda que enfatizam os benefícios imediatos do crédito, minimizando os riscos a longo prazo. Um manual interno que conseguimos consultar ensina os colaboradores a 'enquadrar o crédito como solução para objetivos de vida, não como dívida'.
O que significa tudo isto para o consumidor comum? Primeiro, que precisa de ler os contratos com lupa - ou melhor, com a ajuda de alguém que entenda do assunto. Segundo, que as decisões de crédito hoje vão ter repercussões durante anos, num contexto económico ainda incerto. Terceiro, e mais importante, que a relação com o banco deixou de ser simplesmente sobre guardar dinheiro ou pedir empréstimos. Tornou-se numa negociação permanente onde a informação é a moeda mais valiosa.
Nas próximas semanas, esta tendência deve intensificar-se com a entrada no mercado de novos players digitais que prometem crédito 'instantâneo' através de aplicações móveis. A conveniência terá um preço, e esse preço está a ser calculado agora nos departamentos de análise de dados dos bancos. A pergunta que fica no ar é simples: até que ponto estamos dispostos a trocar privacidade e autonomia financeira por facilidade imediata de crédito?
A resposta, como tudo na economia moderna, provavelmente estará nos números que os bancos vão apresentar nos próximos relatórios trimestrais. Enquanto isso, os portugueses continuam a navegar num mar de opções de crédito cada vez mais complexo, onde a linha entre solução financeira e armadilha de dívida nunca foi tão ténue.
O lado oculto do crédito ao consumo: como os bancos portugueses estão a reinventar as dívidas