O lado oculto do crédito ao consumo: como os bancos reinventam as armadilhas da dívida

O lado oculto do crédito ao consumo: como os bancos reinventam as armadilhas da dívida
Num gabinete acarpetado no décimo andar de um edifício bancário em Lisboa, um gestor de produto sorri enquanto desliza um documento pela mesa. 'Chamamos-lhe o crédito flexível', diz, como se estivesse a apresentar o último modelo de smartphone. Mas não se trata de tecnologia - é um empréstimo pessoal com taxas variáveis que podem subir mais rápido do que o salário mínimo. Esta é a nova cara do crédito ao consumo em Portugal, onde a linguagem financeira se tornou numa névoa deliberada.

Enquanto os portugueses enfrentam uma inflação teimosa e o custo de vida não dá tréguas, os bancos e financeiras descobriram um filão dourado: a necessidade imediata. Os anúncios prometem 'dinheiro rápido sem complicações', mas omitem os detalhes que se escondem nas letras pequenas. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) registou um aumento de 18% nos créditos ao consumo no último ano, mas os especialistas alertam: esta não é uma recuperação económica saudável, é o sintoma de uma economia sob stress.

A investigação revela que as instituições financeiras estão a usar algoritmos sofisticados para identificar potenciais clientes vulneráveis. Um ex-analista de dados de um grande banco português, que pediu anonimato, confessou: 'Desenvolvemos um sistema que cruzava dados de gastos com cartões de crédito, localizações de telemóvel e até pesquisas na internet. Se alguém pesquisava frequentemente por 'empréstimos urgentes' ou visitava sites de comparação de créditos à noite, entrava automaticamente na nossa lista de leads prioritários.'

Esta caça digital aos endividados coincide com o desaparecimento gradual das taxas fixas nos créditos pessoais. O que era regra tornou-se exceção, e os consumidores são agora empurrados para produtos com spreads variáveis que podem mudar sem aviso prévio. 'É como comprar um bilhete de avião sem saber o destino final', compara Maria Santos, economista especializada em proteção ao consumidor.

Mas o fenómeno mais preocupante pode estar nas parcerias entre retalhistas e instituições financeiras. Nas lojas de eletrodomésticos, nos concessionários automóveis, até nas clínicas dentárias - o crédito está à espreita em cada canto. Um vendedor de uma grande superfície confessou sob anonimato: 'Recebemos comissões triplas quando conseguimos que o cliente financie através do nosso parceiro bancário em vez de pagar a pronto. A pressão é tanta que alguns colegas inventam histórias sobre 'juros especiais' que só estão disponíveis naquele dia.'

O Banco de Portugal tem tentado travar os excessos, mas as suas diretrizes parecem gotas num oceano. A nova legislação sobre responsabilidade creditícia, que entrou em vigor no ano passado, exigia maior transparência nas comunicações comerciais. No entanto, os folhetos continuam repletos de asteriscos e notas de rodapé que exigiriam um doutoramento em matemática financeira para serem compreendidos.

Enquanto isso, nas cozinhas portuguesas, as famílias fazem contas cada vez mais apertadas. Carlos Mendes, eletricista de 42 anos, contraiu um crédito para substituir o frigorífico avariado. 'Parecia uma boa solução - 24 meses sem juros. Só não me explicaram que, se atrasasse uma única prestação, os juros retroativos seriam aplicados a todo o período.' Agora paga o triplo do valor do eletrodoméstico.

Os especialistas alertam para um ciclo perigoso: o crédito fácil alivia a pressão imediata, mas cria uma dependência financeira que pode durar anos. 'Estamos a criar uma geração de portugueses que normalizou o endividamento estrutural', adverte o professor universitário António Costa e Silva, especialista em comportamento financeiro. 'O crédito deixou de ser exceção para se tornar parte do orçamento familiar mensal.'

Nas redes sociais, os influencers financeiros multiplicam-se, prometendo 'segredos' para obter créditos aprovados em 24 horas. O que não mencionam são as suas parcerias comerciais com as próprias financeiras. Um estudo da DECO revelou que 70% destes conteúdos 'educativos' omitem relações comerciais com as instituições que recomendam.

O futuro parece incerto. Com a subida das taxas de juro do BCE, muitos portugueses que contraíram créditos variáveis vão sentir o aperto no orçamento familiar. As instituições financeiras preparam-se já para a próxima vaga: os créditos de consolidação, que prometem juntar todas as dívidas numa só prestação - frequentemente mais cara a longo prazo.

Num país onde o salário médio mal chega aos mil euros líquidos, o crédito ao consumo transformou-se numa muleta económica. A questão que fica no ar, como um cheque por cobrir, é simples: quando é que esta bolha de dívida pessoal vai rebentar? E quem vai pagar a fatura quando isso acontecer?

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