O lado oculto do crédito: como os bancos portugueses estão a reinventar o empréstimo no pós-pandemia

O lado oculto do crédito: como os bancos portugueses estão a reinventar o empréstimo no pós-pandemia
Num escritório com vista para o Tejo, um gestor de risco de um dos maiores bancos portugueses abre um ficheiro Excel que conta uma história que os relatórios trimestrais não mostram. As linhas de código não são apenas números — são famílias que adiaram a compra da casa, pequenas empresas que sobreviveram por um fio, reformados que voltaram a pedir empréstimos. Esta é a nova face do crédito em Portugal, moldada por dois anos de pandemia e uma crise energética que está a reescrever as regras do jogo.

Enquanto os indicadores macroeconómicos mostram uma recuperação, nas salas de reuniões dos bancos discute-se uma realidade mais complexa. Os empréstimos à habitação, outrora o motor do crédito, enfrentam o duplo desafio da subida das taxas de juro e do aumento dos preços dos imóveis. As famílias portuguesas, habituadas a anos de juros historicamente baixos, estão agora a fazer contas à vida com Euribor a subir e inflação a corroer o poder de compra. O sonho da casa própria tornou-se, para muitos, um quebra-cabeças financeiro.

Mas há uma revolução silenciosa a acontecer nos balcões dos bancos. O crédito às empresas, particularmente às PMEs, está a transformar-se de forma radical. Programas de apoio como o Programa de Apoio à Economia (PAE) criaram uma ponte durante a tempestade pandémica, mas o que vem a seguir é mais interessante. Bancos como o Montepio e o Banco CTT estão a desenvolver produtos específicos para setores como o turismo sustentável e a economia circular, antecipando as necessidades de um Portugal que precisa de se reinventar.

Nos bastidores, a tecnologia está a redefinir quem tem acesso ao crédito. A análise de dados através de inteligência artificial permite aos bancos avaliar riscos de formas que seriam impensáveis há cinco anos. Pequenos comerciantes que antes seriam rejeitados por falta de histórico bancário suficiente agora podem obter financiamento com base no fluxo das suas vendas online. Esta democratização do crédito tem um lado menos visível: a privacidade dos dados tornou-se a nova moeda de troca no acesso ao financiamento.

O crédito ao consumo conta outra história. Após uma queda abrupta durante os confinamentos, os portugueses estão a voltar a usar o cartão de crédito, mas com um padrão diferente. Em vez de compras por impulso, o foco está em equipamentos que aumentam a eficiência energética das casas — painéis solares, bombas de calor, janelas com melhor isolamento. Os bancos respondem com linhas de crédito 'verdes' com condições vantajosas, antecipando regulamentações europeias que vão tornar este tipo de financiamento cada vez mais relevante.

Nos corredores da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), os reguladores observam estas mudanças com atenção redobrada. A preocupação já não é apenas com a solvabilidade dos bancos, mas com a sustentabilidade dos empréstimos que concedem. O 'stress testing' ambiental — que avalia como as alterações climáticas podem afetar a capacidade de pagamento dos mutuários — começa a fazer parte do vocabulário dos gestores de risco. Em Portugal, onde os incêndios florestais e a subida do nível do mar são ameaças reais, esta não é uma discussão teórica.

O crédito está também a tornar-se mais personalizado. Nos gabinetes de advogados especializados em direito bancário, multiplicam-se os casos de renegociação de dívidas com características únicas. Um restaurante que sobreviveu à pandemia graças a entregas ao domicílio pode não ter as mesmas necessidades que uma oficina automóvel que está a converter-se para veículos elétricos. Os bancos, pressionados pela concorrência de fintechs e plataformas de crowdfunding, estão finalmente a aprender a escutar estas diferenças.

Mas há uma nuvem no horizonte: o aumento do custo de vida está a pressionar as famílias de forma desigual. Enquanto alguns setores prosperam, outros enfrentam dificuldades que se refletem nos índices de incumprimento. Os bancos portugueses, que ainda carregam as cicatrizes da última crise, estão a caminhar numa corda bamba entre apoiar a recuperação económica e proteger os seus balanços. A solução pode estar em produtos híbridos que combinam características de empréstimos tradicionais com seguros de proteção ao crédito, mas estas inovações trazem complexidades regulatórias que estão ainda a ser desbravadas.

O que emerge deste panorama é um sistema de crédito em transição. Os anos de juros negativos pertenceram ao passado, e o futuro pertence aos bancos que conseguirem equilibrar rentabilidade com responsabilidade social. Em Portugal, onde a memória da crise bancária ainda está fresca, este equilíbrio é particularmente delicado. As decisões tomadas hoje nas salas de reuniões dos bancos vão determinar não apenas a saúde financeira das instituições, mas a capacidade do país de enfrentar os desafios que se avizinham — das transições energéticas às revoluções tecnológicas.

No final do dia, o gestor de risco fecha o Excel e olha novamente para o Tejo. As águas do rio continuam o seu curso, tal como o crédito continua a fluir pela economia. Mas o rio mudou o seu leito após as tempestades, e o crédito também nunca mais será o mesmo. A questão que fica no ar, entre os números e as projeções, é simples: Portugal está preparado para navegar estas novas águas?

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