Num escritório com vista para o Tejo, um analista sénior de risco de um dos maiores bancos portugueses mostra-me um gráfico que parece saído de um filme de ficção científica. Linhas coloridas dançam pelo ecrã, cruzando dados de consumo, padrões de mobilidade e até hábitos de compra online. "Isto já não é análise de crédito", diz-me, pedindo anonimato. "É psicologia comportamental aplicada à banca."
A revolução silenciosa no setor financeiro português está a acontecer longe dos holofotes. Enquanto os media discutem taxas de juro e spreads, os departamentos de risco dos bancos estão a desmantelar velhos modelos e a construir algoritmos que preveem a probabilidade de incumprimento com uma precisão que assusta. O tradicional "conhecer o cliente" transformou-se numa mineração de dados que escava até aos nossos últimos tweets.
Esta semana, o Banco de Portugal divulgou números que parecem contraditórios: o volume de crédito concedido às famílias aumentou 3,2%, mas os incumprimentos mantiveram-se estáveis. O milagre? Não exatamente. A verdade é que os bancos estão a ser extremamente seletivos, usando ferramentas que vão muito além da análise de rendimentos e despesas.
"Temos clientes com rendimentos aparentemente sólidos que são rejeitados porque o algoritmo detetou padrões de consumo impulsivo", explica-me uma gestora de risco de outra instituição. "Outros, com rendimentos mais modestos, são aprovados porque o sistema identificou estabilidade nos hábitos de vida."
O problema é que esta hiper-otimização está a criar novas exclusões financeiras. Os chamados "invisíveis digitais" - pessoas com pouca pegada online - estão a ser penalizados, mesmo quando têm situações financeiras saudáveis. Um agricultor do Alentejo, com terras avaliadas em meio milhão, viu o seu pedido de crédito habitacional recusado porque "falta de histórico digital suficiente".
Enquanto isso, nas fintechs que operam em Portugal, a abordagem é ainda mais radical. Uma startup lisboeta está a testar um sistema que analisa a forma como os utilizadores seguram o telemóvel durante o preenchimento de formulários online. "A ansiedade motora é um indicador fiável de stress financeiro", justifica o CEO, que prefere não ser identificado.
Os reguladores estão a tentar acompanhar esta corrida tecnológica. O Banco de Portugal criou uma task force dedicada à inteligência artificial no crédito, mas os especialistas admitem que a legislação está sempre dois passos atrás da inovação. "Estamos a regular carroças enquanto eles constroem foguetões", compara um antigo supervisor bancário.
O impacto social desta transformação é profundo. Bairros inteiros de Lisboa e Porto estão a ser "mapeados" pelos sistemas de crédito, com códigos postais a tornarem-se variáveis decisivas nas aprovações. Um estudo interno de um banco, ao qual tive acesso, mostra que moradores de certas zonas da capital têm 40% menos probabilidade de ver os seus créditos aprovados, independentemente das suas condições financeiras individuais.
Mas há uma revolução dentro da revolução. Pequenas instituições de crédito cooperativo estão a desafiar os gigantes bancários, regressando aos princípios básicos da relação humana. Na Credipouco, uma cooperativa do Minho, ainda se fazem reuniões presenciais para analisar pedidos de crédito. "Olhamos nos olhos, avaliamos o caráter, não apenas os números", diz o presidente, orgulhoso do índice de incumprimento de 0,8%, muito abaixo da média nacional.
Esta dicotomia entre o high-tech e o high-touch está a definir o futuro do crédito em Portugal. Enquanto os grandes bancos apostam em algoritmos cada vez mais complexos, um movimento subterrâneo de instituições mais pequenas está a redescobrir o valor da confiança pessoal.
O que significa tudo isto para o consumidor comum? Primeiro, que a transparência é uma ilusão. Quando pedimos um crédito, não sabemos realmente que variáveis estão a ser consideradas. Segundo, que os nossos dados valem mais do que o nosso dinheiro. E terceiro, que o sistema financeiro está a criar realidades paralelas: uma para os "perfis digitais ideais" e outra para todos os outros.
Nas próximas semanas, o Parlamento discutirá uma proposta para regular o uso de inteligência artificial no crédito. Enquanto isso, nos bastidores, os bancos preparam-se para a próxima fronteira: algoritmos que não apenas avaliam o risco, mas que tentam prever mudanças de vida - casamentos, divórcios, doenças - antes mesmo que elas aconteçam.
O crédito deixou de ser um produto financeiro para se tornar um espelho digital das nossas vidas. E como todos os espelhos, mostra tanto o que somos como o que os outros querem que sejamos. A questão que fica no ar, enquanto os algoritmos aprendem e os reguladores tentam acompanhar, é simples: quem realmente controla o nosso acesso ao dinheiro?
O lado oculto dos créditos: como os bancos portugueses estão a reinventar o risco