O lado sombrio do crédito ao consumo: como as taxas escondidas estão a estrangular as famílias portuguesas

O lado sombrio do crédito ao consumo: como as taxas escondidas estão a estrangular as famílias portuguesas
Num país onde o salário médio mal chega aos mil euros, o crédito ao consumo transformou-se numa espécie de vício coletivo. As prateleiras das lojas estão repletas de smartphones de última geração, sofás com massagem incorporada e viagens ao Caribe pagas a prestações. O que ninguém conta é o preço real desta festa.

Os números oficiais pintam um retrato preocupante: segundo dados do Banco de Portugal, as famílias portuguesas devem mais de 100 mil milhões de euros em crédito. Mas estes são apenas os números que aparecem nos relatórios. A realidade é mais complexa e perigosa.

Durante três meses, percorri os corredores de centros comerciais, entrevistei gestores de loja que pediram anonimato e analisei dezenas de contratos de crédito. O que descobri vai além dos juros altos - estamos perante um sistema desenhado para criar dependência financeira.

"É como oferecer heroína a um viciado", confessa-me um ex-gestor de uma grande superfície. "Sabemos que o cliente não tem capacidade para pagar, mas o sistema de comissões incentiva-nos a vender crédito a qualquer custo."

As taxas escondidas são a arma secreta deste negócio. Além da TAEG (Taxa Anual Efetiva Global), que por si só pode chegar aos 15%, existem custos camuflados: seguros obrigatórios com preços inflacionados, comissões de processamento que aparecem em letra miúda e penalizações por pagamento antecipado que chegam a ser superiores aos juros poupados.

Maria, 34 anos, assistente administrativa, é uma das vítimas deste sistema. Contratou um crédito de 2.000 euros para comprar electrodomésticos após o nascimento do seu filho. Dois anos depois, já pagou 3.500 euros e ainda deve 800. "Parece que estou a correr numa passadeira que nunca para", desabafa, mostrando-me a pilha de cartas de cobrança que recebe todas as semanas.

O fenómeno não se limita às lojas físicas. O crédito online está a crescer a um ritmo alarmante, com plataformas que aprovam empréstimos em 15 minutos, muitas vezes sem verificação adequada da capacidade de pagamento. São os chamados "créditos relâmpago" - rápidos, fáceis e potencialmente devastadores.

Os especialistas alertam para o que chamam de "financeirização do quotidiano". "Transformámos o consumo numa necessidade financiada", explica o economista Pedro Santos. "Em vez de poupar para comprar, as pessoas compram primeiro e pagam depois, muitas vezes a preços que não compreendem completamente."

Mas há luz no fim do túnel. Algumas iniciativas começam a surgir, como plataformas de comparação transparentes e aplicações que ajudam os consumidores a calcular o custo real do crédito antes de assinarem qualquer contrato.

A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) anunciou recentemente que vai aumentar a fiscalização às práticas comerciais no sector. No entanto, os críticos argumentam que as multas são insignificantes face aos lucros gerados.

Enquanto isso, nas cozinhas portuguesas, as famílias continuam a fazer contas ao fim do mês, muitas vezes descobrindo que uma parte significativa do seu orçamento vai para pagar compras feitas há anos. O sonho do consumo imediato transformou-se num pesadelo de dívida crónica.

A solução, segundo os especialistas, passa por educação financeira desde cedo nas escolas e por uma regulação mais rigorosa que proteja verdadeiramente o consumidor. Até lá, o crédito ao consumo continuará a ser uma faca de dois gumes na economia portuguesa - estimulando o crescimento no curto prazo, mas comprometendo a estabilidade financeira das famílias no longo prazo.

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