Nos últimos meses, os portugueses têm sido bombardeados com anúncios de crédito pessoal a taxas aparentemente irresistíveis. Bancos e financeiras competem agressivamente por clientes, prometendo aprovação em minutos e taxas de juro que parecem saídas de um conto de fadas. Mas por trás desta aparente bonança creditícia esconde-se uma realidade preocupante: o endividamento das famílias portuguesas atingiu níveis históricos, ultrapassando os 120% do rendimento disponível.
A facilidade de acesso ao crédito tornou-se uma faca de dois gumes. Enquanto muitos celebram a possibilidade de realizar sonhos adiados - desde a tão desejada viagem ao destino exótico até à renovação da cozinha - outros mergulham num ciclo vicioso de dívidas que parece não ter fim. Os dados do Banco de Portugal mostram que o crédito ao consumo cresceu 15% no último ano, o maior aumento da última década.
O que poucos consumidores percebem é que as taxas promocionais, aquelas que aparecem em letras garrafais nos anúncios, aplicam-se apenas a montantes reduzidos e prazos curtos. Quando o cliente precisa de valores mais significativos ou prazos mais longos, as taxas reais disparam para valores que beiram a usura. Um estudo recente da DECO revelou que a taxa anual efetiva média para créditos pessoais em Portugal ronda os 9,5%, mas pode chegar aos 14% em alguns casos.
A digitalização do processo de crédito trouxe conveniência, mas também riscos. A aprovação instantânea, muitas vezes baseada em algoritmos que não consideram a totalidade da situação financeira do requerente, está a criar uma geração de sobre-endividados. Muitas famílias contraem novos empréstimos apenas para pagar dívidas anteriores, num efeito bola de neve que pode terminar em incumprimento.
Os jovens adultos são particularmente vulneráveis. Seduzidos pela primeira independência financeira e pelo acesso fácil ao crédito, muitos acabam por comprometer até 60% do seu rendimento mensal com prestações de empréstimos. O fenómeno do 'buy now, pay later' (compre agora, pague depois) agrava esta tendência, normalizando o endividamento para consumo imediato.
Paradoxalmente, enquanto o crédito ao consumo dispara, o crédito à habitação - tradicionalmente considerado o 'bom crédito' - enfrenta restrições cada vez maiores. Os critérios de concessão de hipotecas tornaram-se tão rigorosos que muitas famílias de classe média têm dificuldade em adquirir casa própria, mesmo com taxas de juro historicamente baixas.
Especialistas alertam para o perigo de uma bolha de crédito ao consumo. O Banco de Portugal já emitiu avisos sobre a necessidade de maior regulação no sector, mas as medidas concretas tardam a chegar. Entretanto, as financeiras continuam a operar num limbo regulatório que lhes permite práticas questionáveis.
A educação financeira surge como a única arma verdadeiramente eficaz contra este fenómeno. Programas de literacia financeira nas escolas e locais de trabalho poderiam ajudar os consumidores a tomar decisões mais informadas sobre endividamento. No entanto, estas iniciativas ainda são escassas e pouco eficazes.
O futuro do crédito em Portugal dependerá do equilíbrio entre a necessária inclusão financeira e a proteção dos consumidores. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a assistir ao paradoxo de um país onde é mais fácil comprar um smartphone de última geração a crédito do que adquirir uma casa para viver.
O paradoxo do crédito em Portugal: acesso fácil mas endividamento recorde
