O paradoxo do crédito em Portugal: acesso fácil para quem não precisa e portas fechadas para quem mais precisa

O paradoxo do crédito em Portugal: acesso fácil para quem não precisa e portas fechadas para quem mais precisa
Num país onde o crédito ao consumo cresce a ritmos acelerados enquanto o crédito às empresas estagna, Portugal vive um paradoxo financeiro que está a moldar o futuro económico da nação. Os dados mais recentes do Banco de Portugal revelam uma realidade preocupante: as famílias portuguesas estão a endividar-se como nunca, enquanto as pequenas e médias empresas continuam a lutar por financiamento.

Nas ruas de Lisboa e Porto, as montras das lojas exibem cartazes sedutores: "Crédito pessoal até 50.000 euros", "Financiamento a 100%", "Sem entrada necessária". Os centros comerciais transformaram-se em autênticas feiras de crédito, onde qualquer pessoa com um recibo de vencimento pode obter em minutos o que antes exigia semanas de análise bancária. Mas enquanto o cidadão comum tem crédito ao alcance da mão, o empresário que quer expandir o seu negócio enfrenta um labirinto burocrático que muitas vezes termina em recusa.

O fenómeno não é novo, mas tem-se agravado nos últimos anos. Os bancos portugueses, ainda a recuperar dos traumas da crise financeira e do BES, tornaram-se extremamente avessos ao risco quando se trata de financiar empresas. As exigências de garantias são cada vez mais elevadas, os prazos de análise mais longos e os critérios mais restritivos. O resultado é que muitas empresas viáveis estão a morrer à sede de financiamento, enquanto os consumidores são inundados com ofertas de crédito.

Esta distorção no mercado de crédito tem consequências profundas na economia real. As PME, que representam 99,9% do tecido empresarial português e empregam dois terços dos trabalhadores, veem-se incapazes de investir em inovação, expansão ou mesmo na simples renovação de equipamentos. O efeito dominó é visível: menor competitividade, estagnação salarial e dependência crescente do turismo e da construção.

Enquanto isso, o endividamento das famílias portuguesas aproxima-se perigosamente dos níveis pré-crise. Segundo os últimos dados, o crédito ao consumo cresceu 8,7% no último ano, com especial destaque para os empréstimos pessoais e cartões de crédito. Os portugueses estão a usar o crédito não apenas para grandes compras como automóveis ou habitação, mas também para despesas do dia-a-dia, criando uma bolha de consumo sustentada por dívida.

Os especialistas alertam para os riscos desta situação. "Estamos a criar uma economia de dois andares", explica Maria Santos, economista especializada em mercados financeiros. "No andar de cima, temos consumidores a gastar acima das suas possibilidades, impulsionados por crédito fácil. No andar de baixo, temos empresas estranguladas pela falta de financiamento, incapazes de crescer e criar empregos de qualidade."

A situação é particularmente grave no interior do país, onde o acesso ao crédito empresarial é ainda mais difícil. Muitos bancos fecharam agências nas zonas rurais, deixando os pequenos empresários sem acesso direto aos gestores de conta que antes facilitavam o processo de crédito. O resultado é um abandono progressivo do interior, com jovens qualificados a emigrar para as cidades ou para o estrangeiro.

O governo tem tentado responder a este desafio com várias iniciativas, desde os fundos do Portugal 2020 até aos mais recentes programas de apoio ao investimento. Mas a burocracia associada a estes programas torna-os inacessíveis para muitos pequenos empresários, que não têm recursos para contratar consultores especializados ou para esperar meses pela aprovação.

Paralelamente, surgem alternativas no mercado. As fintechs de crédito estão a ganhar terreno, oferecendo processos mais ágeis e critérios diferentes dos bancos tradicionais. Plataformas de crowdfunding e business angels também começam a preencher parte do vazio deixado pela banca tradicional. Mas estas soluções ainda são marginais face às necessidades do tecido empresarial português.

O que está em jogo vai além da simples distribuição de crédito. Está em causa o modelo de desenvolvimento económico de Portugal. Um país que financia mais o consumo do que o investimento está a comprometer o seu futuro. A produtividade estagna, a inovação fica para trás e a dependência de setores como o turismo aumenta.

A solução não passa por restringir o crédito ao consumo, mas por criar condições para que o crédito às empresas flua de forma mais eficiente. Isso exige mudanças profundas: desde a reforma do sistema judicial para acelerar processos de insolvência até à criação de instrumentos financeiros mais adequados às PME, passando pela educação financeira tanto de empresários como de consumidores.

Enquanto isso não acontecer, Portugal continuará preso neste paradoxo: um país onde é mais fácil obter crédito para comprar um carro novo do que para abrir uma fábrica, onde se financia mais o presente do que se investe no futuro. E o preço desta distorção será pago pelas gerações seguintes, que herdarão uma economia menos diversificada, menos inovadora e mais vulnerável a crises externas.

O desafio que se coloca aos decisores políticos, aos reguladores e ao próprio setor financeiro é enorme. Mas a alternativa - continuar no caminho atual - é simplesmente insustentável. O crédito não é apenas uma questão de números e taxas de juro; é o sangue que corre nas veias da economia. E em Portugal, esse sangue está a circular de forma desequilibrada, alimentando alguns órgãos enquanto outros definham.

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