O paradoxo do crédito em Portugal: acesso fácil para uns, deserto financeiro para outros

O paradoxo do crédito em Portugal: acesso fácil para uns, deserto financeiro para outros
Num país onde as taxas de juro subiram como cogumelos após a chuva, o acesso ao crédito tornou-se num labirinto com portas diferentes para cada português. Enquanto uns recebem propostas de empréstimo no telemóvel como se fossem convites para um jantar, outros batem de porta em porta sem encontrar uma única chave que abra o cofre bancário.

Esta realidade fracturada revela-se nos números mais recentes do Banco de Portugal. O crédito à habitação cresceu 1,2% em setembro, mas esse crescimento esconde histórias paralelas. Para quem tem contrato sem termo e salário acima da média, os bancos continuam a abrir as portas com sorrisos. Já os trabalhadores por conta própria, mesmo com negócios sólidos, enfrentam interrogatórios dignos de um tribunal.

O fenómeno tem nome: discriminação algorítmica. Os sistemas de scoring automatizados que os bancos implementaram após a crise de 2008 criaram categorias invisíveis de cidadãos. Um freelancer com rendimentos mensais de 3.000 euros pode ter mais dificuldade em obter um crédito pessoal de 10.000 euros do que um assalariado que ganha 1.500. A máquina não entende profissões não tradicionais, nem fluxos de caixa irregulares, por mais saudáveis que sejam.

Nas periferias das grandes cidades, a situação assume contornos dramáticos. As lojas de crédito ao consumo multiplicam-se como ervas daninhas, oferecendo soluções rápidas a juros que chegam a ultrapassar os 20%. É aí que muitos portugueses, excluídos do sistema bancário tradicional, acabam por se refugiar. O resultado? Um endividamento de curto prazo que se transforma em armadilha de longo prazo.

Paradoxalmente, este deserto de crédito para alguns coexiste com uma inundação de oferta para outros. Os mesmos bancos que negam empréstimos a pequenos comerciantes lançam campanhas agressivas para captar clientes com perfis considerados 'low risk'. Cartas personalizadas, telefonemas diretos, propostas pré-aprovadas - um universo de facilidades que contrasta brutalmente com a experiência da maioria.

A regulação tenta acompanhar esta realidade em mutação. O Banco de Portugal introduziu novas regras de concessão de crédito, mas os especialistas alertam: as medidas focam-se mais na estabilidade do sistema do que na inclusão financeira. Enquanto isso, as fintechs tentam preencher as lacunas, usando dados alternativos para avaliar a credibilidade - desde as faturas da luz até ao histórico de pagamentos das subscrições de streaming.

Mas será esta a solução? Ou estamos a criar um sistema financeiro paralelo, onde os dados substituem a relação humana entre banqueiro e cliente? As perguntas multiplicam-se à medida que a tecnologia avança mais rápido que a legislação.

O caso dos jovens adultos ilustra bem esta encruzilhada. A geração entre os 25 e os 35 anos, altamente digitalizada e com carreiras não lineares, encontra-se particularmente vulnerável. Os algoritmos não sabem como classificar quem muda de emprego a cada dois anos, mesmo que cada mudança represente um aumento salarial. O resultado é uma geração condenada ao aluguer permanente ou a depender dos pais para a entrada da casa própria.

Nas zonas rurais, o problema assume outra dimensão. Agricultores com terras avaliadas em centenas de milhares de euros veem negados empréstimos de modestos 15.000 euros para comprar maquinaria. O banco prefere o risco calculado do crédito automóvel na cidade ao risco imprevisível das colheitas.

Esta geografia do crédito desenha um novo mapa de desigualdades em Portugal. Não é apenas uma questão de norte versus sul, ou de litoral versus interior. É uma fractura que corta verticalmente a sociedade, separando os que falam a linguagem dos algoritmos dos que ainda comunicam em histórias de vida.

As soluções exigem mais do que ajustes técnicos. Requerem um debate profundo sobre que tipo de sociedade financeira queremos construir. Até lá, continuaremos com um pé no futuro digital e outro num passado onde o aperto de mão ainda valia mais que qualquer score.

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