Num cenário económico marcado por taxas de juro elevadas e incertezas geopolíticas, o mercado de crédito em Portugal vive um paradoxo digno de análise. Enquanto os dados mais recentes do Banco de Portugal mostram uma contração na concessão de novos empréstimos, especialmente no imobiliário, as famílias portuguesas continuam a bater à porta das instituições financeiras, muitas vezes sem sucesso. Esta desconexão entre oferta e procura está a criar fracturas sociais invisíveis que merecem ser escrutinadas.
Os números falam por si: no último trimestre, o volume de crédito à habitação concedido caiu 34% face ao período homólogo. Contudo, o número de pedidos de informação e simulações aumentou 18% no mesmo intervalo. Como explicar esta aparente contradição? A resposta está nos critérios de aprovação, que se tornaram tão restritivos que transformaram o acesso ao crédito num privilégio de poucos. Os bancos, ainda a digerir os efeitos da pandemia e preocupados com potenciais incumprimentos, ergueram barreiras que muitos consideram excessivas.
O fenómeno é particularmente visível entre os jovens adultos. Maria, 29 anos, arquiteta, partilha a sua experiência: "Depois de seis meses a poupar para a entrada, pensei que estava tudo resolvido. Mas o banco rejeitou o meu pedido porque, segundo eles, o meu contrato a termo certo não oferece garantias suficientes. Trabalho na mesma empresa há quatro anos, mas isso não conta." Histórias como a de Maria multiplicam-se por todo o país, criando uma geração de "excluídos creditícios" que vê adiada a concretização do sonho da casa própria.
Mas o problema não se limita ao crédito à habitação. O financiamento às pequenas e médias empresas (PME), tradicional motor da economia portuguesa, enfrenta obstáculos igualmente significativos. António Silva, dono de uma padaria familiar no Porto, desabafa: "Precisava de 50 mil euros para renovar os fornos e aumentar a produção. Apresentei um plano de negócios detalhado, projeções realistas, tudo. A resposta foi negativa porque o meu estabelecimento tem menos de cinco anos de atividade." Esta aversão ao risco está a estrangular o empreendedorismo nacional num momento em que a inovação é crucial.
Curiosamente, enquanto os bancos tradicionais apertam o cerco, surgem alternativas no mercado. As fintechs especializadas em crédito começam a ganhar terreno, oferecendo soluções mais flexíveis, embora com taxas geralmente mais elevadas. Plataformas de crowdfunding e empréstimos peer-to-peer também registam crescimento, indicando que a necessidade de financiamento encontra caminhos alternativos quando as vias tradicionais se fecham. Contudo, estes modelos trazem riscos próprios que os consumidores nem sempre compreendem na totalidade.
O Banco Central Europeu (BCE) já manifestou preocupação com o aperto excessivo das condições de crédito na zona euro, alertando para os efeitos negativos no crescimento económico. Em Portugal, onde o investimento depende fortemente do financiamento bancário, o impacto pode ser particularmente severo. Especialistas ouvidos para este artigo alertam para um possível efeito dominó: menos crédito significa menos investimento, o que se traduz em menor crescimento e, paradoxalmente, em maior risco para o sistema financeiro a médio prazo.
Há ainda uma dimensão social pouco discutida. O crédito tornou-se um mecanismo de seleção social, onde os critérios de aprovação favorecem sistematicamente determinados perfis em detrimento de outros. Trabalhadores independentes, profissionais com carreiras não lineares, residentes em zonas rurais – todos enfrentam barreiras adicionais que pouco têm a ver com a sua real capacidade de pagamento. Esta segmentação invisível está a aprofundar desigualdades pré-existentes na sociedade portuguesa.
O que esperar do futuro? Analistas divergem nas previsões. Alguns acreditam que a situação se normalizará quando as taxas de juro começarem a descer, provavelmente no próximo ano. Outros defendem que assistimos a uma mudança estrutural, com os bancos a adotarem critérios permanentemente mais conservadores. Independentemente do cenário que se concretize, uma coisa é certa: o acesso ao crédito continuará a ser um termómetro preciso da saúde económica e social do país.
Enquanto isso, milhares de portugueses navegam num labirinto de requisitos e condições, muitas vezes sem compreender plenamente as regras do jogo. Num país onde o crédito foi durante décadas um motor de mobilidade social, o atual cenário levanta questões fundamentais sobre igualdade de oportunidades e justiça económica. As respostas a estas questões definirão não apenas o futuro do sistema financeiro, mas o próprio tecido social português nas próximas décadas.
O paradoxo do crédito em Portugal: como os bancos emprestam menos enquanto as famílias pedem mais