O paradoxo do crédito em Portugal: como os portugueses estão a navegar entre a necessidade e o endividamento

O paradoxo do crédito em Portugal: como os portugueses estão a navegar entre a necessidade e o endividamento
Num país onde o salário médio mal chega para cobrir as despesas básicas, o crédito tornou-se numa espécie de oxigénio financeiro para muitas famílias portuguesas. A ironia é cruel: precisamos de dinheiro para sobreviver, mas endividamo-nos para o conseguir. Esta realidade, que atravessa gerações e classes sociais, merece uma análise profunda que vá além dos números frios dos relatórios bancários.

Nas últimas semanas, percorri o país de norte a sul, conversando com famílias, economistas e especialistas em finanças pessoais. O que encontrei foi um retrato complexo de uma nação dividida entre a prudência herdada dos tempos da troika e a necessidade premente de acesso a capital. Em Braga, conheci a Maria, de 42 anos, que contraiu um crédito pessoal para pagar a formação da filha em enfermagem. "Se não fosse este empréstimo, a minha filha não podia estudar. É um risco que tive de correr", confessou-me, com um misto de orgulho e preocupação nos olhos.

Os dados mais recentes do Banco de Portugal mostram que o crédito às famílias continua a crescer, mas com um padrão curioso: enquanto os empréstimos para habitação desaceleram, o crédito ao consumo mantém-se resiliente. Esta dualidade revela muito sobre as prioridades dos portugueses num contexto de inflação persistente e custo de vida elevado. O professor António Silva, especialista em economia comportamental da Universidade Nova, explica: "Estamos perante um fenómeno de substituição. As pessoas adiam a compra da casa, mas não podem adiar a educação dos filhos ou os cuidados de saúde".

O setor bancário, por seu lado, navega entre a obrigação de conceder crédito e os imperativos de gestão de risco. Num almoço discreto num restaurante de Lisboa, um gestor de um dos maiores bancos portugueses partilhou connosco, sob condição de anonimato: "Avaliamos cada pedido com lupa, mas sabemos que recusar um crédito pode significar condenar uma família à estagnação económica. É um equilíbrio delicado".

A tecnologia está a revolucionar este ecossistema. As fintechs de crédito cresceram 47% no último ano em Portugal, oferecendo alternativas mais ágeis aos bancos tradicionais. A Joana Ribeiro, CEO de uma startup de empréstimos online, descreve o seu modelo: "Usamos inteligência artificial para analisar centenas de variáveis além do histórico creditício. Queremos dar uma segunda oportunidade a quem os bancos tradicionais rejeitam".

Mas esta democratização do acesso ao crédito traz novos desafios regulatórios. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões tem vindo a alertar para os riscos de sobre-endividamento, especialmente entre os mais jovens. "Há uma geração que não viveu a crise de 2008 e que encara o crédito com menos cautela", nota um inspector que preferiu não se identificar.

Nas zonas rurais, a realidade é ainda mais complexa. No Alentejo, os agricultores dependem de linhas de crédito específicas para investir em equipamento e tecnologia. O Manuel, produtor de azeite há trinta anos, mostrou-me os seus novos lagares: "Sem crédito agrícola, ainda estaríamos a usar métodos do século passado. Mas os juros comem grande parte do lucro".

A educação financeira emerge como peça fundamental neste puzzle. Projetos como o Todos Contam têm feito um trabalho notável junto das escolas, mas especialistas defendem que é preciso ir mais longe. "Ensinar matemática financeira não chega. Temos de preparar os portugueses para tomar decisões conscientes sobre crédito desde cedo", defende a psicóloga económica Carla Mendes.

O futuro do crédito em Portugal dependerá de como conjugamos inovação com responsabilidade. As criptomoedas e o financiamento colaborativo começam a surgir como alternativas, mas trazem os seus próprios riscos. Num café do Porto, um grupo de jovens empresários discutia precisamente este tema. "O sistema tradicional não nos serve. Estamos a criar as nossas próprias soluções", explicou o Miguel, de 28 anos, que fundou uma cooperativa de crédito entre pequenos negócios.

O que esta investigação revela é que o crédito deixou de ser apenas uma ferramenta financeira para se tornar num termómetro do bem-estar social. As escolhas que fazemos hoje sobre como acedemos e gerimos o dinheiro emprestado vão moldar o Portugal dos próximos anos. A pergunta que fica é: estamos a construir alicerces sólidos ou a cavar buracos mais fundos?

Nas palavras sábias de um antigo gestor bancário reformado que encontrei numa esplanada de Coimbra: "O crédito é como o fogo: pode cozinhar o teu jantar ou queimar a tua casa. Tudo depende de como o usas". Talvez seja esta a lição mais importante que podemos tirar desta complexa relação entre os portugueses e o dinheiro emprestado.

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