Os números parecem contraditórios: as taxas de juro estão nos níveis mais baixos da história, os bancos inundam os portugueses com ofertas de crédito, mas as famílias continuam a sentir o peso da dívida como uma pedra no sapato. Enquanto os economistas debatem se estamos perante uma bolha ou uma oportunidade histórica, milhares de portugueses navegam num mar de incertezas, onde o acesso fácil ao dinheiro convive com o medo do futuro.
Nos últimos meses, as páginas de economia dos principais jornais portugueses têm sido dominadas por uma palavra: inflação. O fantasma que parecia adormecido desde os anos 80 voltou a assombrar a Europa, e Portugal não é exceção. O que começou como um aumento pontual nos preços da energia transformou-se numa subida generalizada que está a corroer o poder de compra dos portugueses. O paradoxo é evidente: nunca foi tão barato pedir dinheiro emprestado, mas nunca foi tão caro viver.
As taxas de juro negativas do Banco Central Europeu criaram um ambiente único na história do crédito. Os bancos, ávidos por colocar o dinheiro a render, transformaram-se em vendedores agressivos de empréstimos. As campanhas publicitárias multiplicam-se, as condições aparentam ser irresistíveis, e o processo de aprovação acelerou-se de forma impressionante. Mas por trás desta facilidade aparente escondem-se armadilhas que muitos só descobrem quando já é tarde demais.
O crédito ao consumo tornou-se a porta de entrada para um ciclo vicioso. O smartphone de última geração, as férias no Algarve, o carro um pouco melhor do que o necessário – tudo parece acessível quando se pode pagar em 60 prestações sem juros. O problema surge quando estas pequenas dívidas se acumulam, quando surgem imprevistos, quando a taxa variável que parecia uma benção se transforma num pesadelo. As famílias portuguesas, ainda a recuperar dos traumas da última crise, encontram-se novamente numa encruzilhada perigosa.
O mercado imobiliário adiciona outra camada de complexidade a este puzzle. Os preços das casas continuam a subir, alimentados por crédito barato e por uma procura que parece insaciável. Os jovens que conseguem finalmente juntar a entrada para a sua primeira casa descobrem que estão a comprometer uma percentagem alarmante do seu rendimento com a prestação da habitação. O sonho da casa própria transforma-se num fardo que condiciona todas as outras decisões financeiras.
A sombra do sobreendividamento paira sobre muitas famílias. Os números oficiais mostram uma melhoria, mas quem trabalha no terreno conhece uma realidade diferente. As associações de apoio ao consumidor relatam um aumento preocupante de pedidos de ajuda, muitos deles de pessoas com empregos estáveis e rendimentos aparentemente suficientes. O problema não é a falta de dinheiro, mas sim a má gestão do que existe – e a tentação constante de recorrer ao crédito para tapar buracos que deveriam ser resolvidos de outra forma.
A educação financeira surge como a grande ausente neste debate. Nas escolas, o tema continua a ser tratado de forma superficial, quando é tratado. Nas famílias, o dinheiro permanece um tabu, um assunto que se evita para não criar conflitos. O resultado é uma geração que sabe operar um smartphone com destreza impressionante, mas que não compreende como funcionam os juros compostos ou o que significa realmente uma taxa anual efetiva global.
As fintechs prometem revolucionar o sector, mas trazem consigo novos riscos. A facilidade com que se pode pedir um empréstimo através de uma aplicação é assustadora. Basta alguns cliques, sem aquele momento de reflexão que ocorria quando se tinha de ir ao banco, falar com um gestor, assinar papéis. A instantaneidade do digital eliminou barreiras importantes, mas também removeu os travões naturais que impediam decisões impulsivas.
O crédito consolidado apresenta-se como a solução milagrosa para quem tem várias dívidas, mas esconde perigos subtis. Juntar tudo numa única prestação mais baixa parece inteligente, mas muitas vezes significa alongar o prazo do empréstimo e pagar mais juros no longo prazo. É uma solução paliativa que trata os sintomas sem atacar a causa do problema: os hábitos de consumo que levaram ao endividamento em primeiro lugar.
A inflação adiciona uma variável imprevisível a esta equação. Se as taxas de juro subirem para combater o aumento dos preços, milhares de famílias com créditos variáveis verão as suas prestações aumentar subitamente. O mesmo salário, as mesmas despesas, mas uma fatia maior destinada ao banco. É um cenário que muitos não contemplaram quando assinaram os contratos, confiantes de que as taxas baixas eram a nova normalidade.
A regulação tenta acompanhar estas mudanças, mas sempre a reboque da inovação financeira. As autoridades alertam para os riscos, impõem novas regras, tentam proteger os consumidores. Mas a verdade é que a criatividade dos players financeiros em encontrar novas formas de conceder crédito supera frequentemente a capacidade dos reguladores em controlar o mercado.
No meio deste turbilhão, os portugueses enfrentam escolhas difíceis. Recusar o crédito fácil significa ficar para trás num mundo onde tudo parece exigir financiamento. Aceitá-lo sem critério é caminhar sobre um campo minado. O equilíbrio está na informação, na educação, na capacidade de distinguir entre o crédito que liberta e o crédito que escraviza.
O futuro do crédito em Portugal dependerá desta capacidade coletiva de encontrar um caminho sustentável. Um caminho onde o acesso ao financiamento seja uma ferramenta de progresso, não uma armadilha. Onde as taxas baixas sirvam para investir no futuro, não para financiar o consumo imediato. Onde a inovação financeira traga mais transparência, não mais complexidade.
Enquanto isso, nas cozinhas portuguesas, à mesa do jantar, continuam a tomar-se decisões que definirão o futuro económico do país. Com cada contrato assinado, com cada prestação paga, escreve-se uma página desta história complexa do crédito em Portugal. Uma história que está longe de terminar, e cujo final dependerá da sabedoria com que lidamos com o paradoxo do dinheiro barato num mundo cada vez mais caro.
O paradoxo do crédito em Portugal: dinheiro barato, famílias endividadas e a sombra da inflação