Num país onde o fantasma da crise ainda assombra as conversas de café, assistimos a um fenómeno que desafia a lógica económica convencional. Enquanto os indicadores macroeconómicos pintam um cenário de desaceleração, os números do crédito ao consumo disparam para níveis recorde. Esta contradição aparente esconde uma realidade complexa sobre como os portugueses estão a navegar nas águas turbulentas da economia pós-pandemia.
A primeira pista para este enigma surge quando analisamos os dados do Banco de Portugal. No último trimestre, o crédito ao consumo cresceu 12% face ao período homólogo, um valor que contrasta fortemente com a moderação do crescimento económico. Os especialistas apontam para um cocktail de fatores: a inflação persistente que corrói o poder de compra, o aumento das taxas de juro que antecipa custos futuros mais elevados, e uma certeza 'fadista' de que o amanhã poderá ser ainda mais difícil do que hoje.
Mas quem são estes novos devedores? Ao contrário do que se poderia imaginar, não se trata apenas de famílias em situações de emergência financeira. Os dados revelam um perfil surpreendente: jovens profissionais entre os 25 e 35 anos, com empregos estáveis e rendimentos acima da média, que estão a recorrer ao crédito não para sobreviver, mas para manter um estilo de vida que a inflação tornou insustentável. São os chamados 'ricos pobres' - quem, apesar de ter um salário decente, viu o seu poder de compra evaporar-se nos últimos dois anos.
O setor automóvel oferece um caso de estudo fascinante. As vendas de carros novos caíram, mas o financiamento automóvel disparou. A explicação? Os portugueses estão a optar por manter os seus veículos por mais tempo, recorrendo a empréstimos para reparações major ou para a compra de viaturas usadas de melhor qualidade. É uma estratégia de contenção que paradoxalmente exige mais endividamento no curto prazo.
Outro fenómeno curioso é o crédito para educação e formação. Num mercado de trabalho cada vez mais competitivo, muitas famílias estão a contrair empréstimos para investir em cursos especializados ou mestrados para os seus filhos. É um cálculo arriscado: endividar-se hoje na esperança de melhores empregos amanhã. Os bancos, por seu lado, estão a criar produtos específicos para este nicho, com prazos mais longos e condições diferenciadas.
A habitação continua a ser o elefante na sala. Embora o crédito à habitação tenha abrandado, assistimos a um aumento significativo dos empréstimos para obras e reabilitação. Muitas famílias, confrontadas com a impossibilidade de comprar casa nova, estão a investir na que já têm. É uma forma de criar valor sem mudar de código postal, mas que exige um nível de endividamento que deixaria os nossos avós de cabelos em pé.
O lado mais sombrio desta história revela-se nos créditos de última geração - os famosos 'buy now, pay later' que chegaram a Portugal através de fintechs internacionais. Estes produtos, muitas vezes apresentados como uma alternativa ao cartão de crédito, estão a criar uma nova geração de sobre-endividados que acumulam pequenas dívidas em múltiplas plataformas. A facilidade de acesso é tanto a sua virtude como o seu vício.
Os psicólogos económicos que estudam estes comportamentos falam de 'normalização do risco'. Após anos de taxas de juro historicamente baixas, os portugueses perderam o medo ao endividamento. O crédito deixou de ser visto como um último recurso para se tornar uma ferramenta de gestão financeira do dia-a-dia. Esta mudança cultural pode ter consequências profundas a longo prazo.
Os bancos, claro, não são meros espectadores desta transformação. Estão a adaptar-se rapidamente, desenvolvendo algoritmos de scoring mais sofisticados e produtos segmentados para diferentes perfis de risco. A digitalização acelerou este processo, permitindo aprovações em minutos em vez de dias. Mas será que a tecnologia está a ultrapassar a prudência?
O que mais preocupa os reguladores é o efeito dominó. Uma economia onde tantas famílias estão altamente alavancadas torna-se mais vulnerável a choques externos. Basta uma subida adicional das taxas de juro ou um aumento do desemprego para desencadear uma crise de incumprimentos. É um equilíbrio delicado entre estimular o consumo e prevenir bolhas de crédito.
No meio desta complexidade, surge uma pergunta fundamental: estamos a testemunhar uma mudança estrutural no relacionamento dos portugueses com o dinheiro, ou é apenas mais um ciclo que acabará mal? A história sugere que os excessos creditícios raramente terminam bem, mas talvez desta vez seja diferente. Talvez tenhamos aprendido com os erros do passado.
O que é certo é que o crédito deixou de ser um tema apenas para economistas. Tornou-se uma questão cultural, psicológica e até geracional. Compreender estes novos padrões de endividamento é essencial para antecipar o futuro da economia portuguesa - e para evitar que o remédio seja pior do que a doença.
O paradoxo do crédito em Portugal: por que os portugueses estão a pedir mais empréstimos enquanto a economia desacelera
