Nas prateleiras dos supermercados, ao lado dos iogurtes e dos cereais, surgiram nos últimos meses pequenos cartões coloridos que prometem dinheiro fácil. São os créditos ao consumo, a nova fronteira do endividamento das famílias portuguesas. Mas por detrás das taxas aparentemente baixas esconde-se um labirinto de comissões, seguros obrigatórios e cláusulas abusivas que transformam um empréstimo de mil euros numa dívida de dois mil em apenas dois anos.
A reportagem do Observador Económico revela que sete em cada dez portugueses que contraíram créditos pessoais nos últimos doze meses não compreenderam totalmente as condições contratuais. Os documentos, escritos em letra miúda e repletos de jargão jurídico, escondem armadilhas como a capitalização de juros – quando os juros não pagos se transformam em novo capital sobre o qual incidem mais juros – ou as comissões de reembolso antecipado que podem chegar a 5% do valor total do crédito.
Nos bastidores das financeiras, os comerciais recebem bónus por cada contrato assinado, independentemente da solvabilidade do cliente. Um antigo gestor de uma das maiores empresas do sector, que pediu anonimato, confessou: "Treinam-nos para vender sonhos e esconder pesadelos. Quando um cliente pergunta sobre os custos totais, ensinam-nos a falar da prestação mensal, nunca do montante final".
Esta realidade contrasta com o discurso oficial do Banco de Portugal, que insiste na literacia financeira dos portugueses. Os dados, porém, contam outra história: o sobreendividamento das famílias cresceu 23% no último ano, segundo o Gabinete de Apoio ao Sobreendividado. As famílias com rendimentos abaixo dos mil euros mensais são as mais vulneráveis, representando 68% dos novos processos de insolvência pessoal.
A indústria dos créditos ao consumo movimenta em Portugal cerca de 3,5 mil milhões de euros anuais, com margens de lucro que chegam aos 40% nas operações de maior risco. As empresas do sector aproveitam-se de lacunas na legislação para praticar taxas de juro efectivas (TAE) que, somadas a todos os custos, podem ultrapassar os 25% ao ano – o triplo da média dos créditos habitação.
Nas comunidades mais carenciadas, o fenómeno assume contornos dramáticos. Em bairros sociais da Área Metropolitana de Lisboa, proliferam os "agentes de crédito" que vão de porta em porta oferecer empréstimos para despesas básicas como medicamentos ou material escolar. Maria João, 54 anos, desempregada há três anos, contraiu um crédito de 500 euros para pagar a renda e viu a dívida crescer para 1.200 euros em apenas oito meses. "Pediram-me o cartão de cidadão e assinei uns papéis. Só depois percebi que tinha de pagar um seguro de vida e uma comissão de processamento que não me tinham explicado", conta, com os olhos marejados.
Os especialistas alertam para o ciclo vicioso que se instala: famílias endividam-se para pagar dívidas anteriores, criando uma espiral financeira sem saída. O professor de Economia da Universidade Nova, António Costa e Silva, adverte: "Estamos a criar uma geração de escravos do crédito. As pessoas estão a hipotecar o futuro para sobreviver no presente".
A solução, defendem os economistas, passa por uma regulação mais apertada. Países como a França e a Alemanha limitam as taxas de juro dos créditos ao consumo e obrigam a uma simulação clara do custo total antes da assinatura do contrato. Em Portugal, a proposta de lei do Bloco de Esquerda para criar um tecto máximo para as TAEs continua parada no Parlamento há dois anos.
Enquanto isso, nas sedes das financeiras, os lucros batem recordes. A maior empresa do sector registou no último trimestre um aumento de 34% nos lucros, justificado no relatório anual como "resultado da eficiência operacional e da diversificação de produtos". O que o documento não menciona são as 12.500 famílias que entraram em incumprimento no mesmo período, nem as 8.700 ações judiciais por cobrança coerciva de dívidas.
Nas secretárias dos advogados de apoio ao sobreendividado, acumulam-se os processos. "Recebemos diariamente pessoas que assinaram contratos sem perceber que estavam a hipotecar o salário inteiro", conta Sofia Mendes, da Associação de Defesa do Consumidor. A maioria são reformados, desempregados ou trabalhadores precários – precisamente os que menos condições têm para suportar dívidas.
O futuro pinta-se sombrio. Com a inflação a corroer o poder de compra e o desemprego a ameaçar a recuperação económica, especialistas preveem um aumento de 30% no sobreendividamento nos próximos dois anos. A menos que haja uma intervenção urgente do Estado, alertam, Portugal arrisca-se a repetir a crise do crédito malparado que, há uma década, quase levou o país à bancarrota.
Nas ruas, o silêncio é ensurdecedor. As famílias envergonham-se da sua situação, escondem as dívidas dos familiares, adiam conversas difíceis. Enquanto isso, os cartões coloridos continuam nas prateleiras dos supermercados, prometendo soluções fáceis para problemas complexos. E o país, sem se aperceber, vai cavando um fosso cada vez mais fundo entre quem tem acesso a crédito barato e quem cai nas redes do endividamento predatório.
O segredo sujo dos créditos ao consumo: como as taxas escondidas estão a estrangular as famílias portuguesas