A revolução silenciosa: como os portugueses estão a reinventar a energia

A revolução silenciosa: como os portugueses estão a reinventar a energia
Há uma transformação a acontecer nas casas portuguesas que poucos estão a notar. Enquanto os debates políticos sobre energia se concentram em megaprojetos e contratos milionários, uma revolução silenciosa está a ganhar forma nos telhados, nas garagens e até nas varandas. Os números oficiais mostram que a capacidade de produção solar distribuída em Portugal cresceu 47% no último ano, mas os números não contam a história completa.

Esta não é apenas uma história de painéis solares. É sobre como famílias em Bragança estão a criar comunidades energéticas que partilham eletricidade entre vizinhos. É sobre o restaurante em Aveiro que instalou microturbinas no rio Vouga para alimentar as suas cozinhas. É sobre o grupo de amigos em Lisboa que transformou um velho armazém numa central de baterias comunitária, armazenando energia solar durante o dia para usar à noite.

O que está a impulsionar esta mudão não são apenas os incentivos governamentais, mas algo mais profundo: uma desconfiança crescente face aos grandes fornecedores e uma vontade de tomar o controlo. "Quando recebi a última fatura da luz, percebi que estava a pagar não apenas pela energia, mas por toda uma estrutura que já não faz sentido", conta Marta Silva, arquiteta do Porto que transformou o seu prédio de três andares numa microcentral elétrica.

Mas esta descentralização traz desafios que ninguém antecipou. A rede elétrica portuguesa foi construída para um fluxo unidirecional: das grandes centrais para os consumidores. Agora, com milhares de pequenos produtores a injetar energia na rede, o sistema está a ser testado de formas inéditas. Engenheiros da REN trabalham diariamente para evitar sobrecargas em subestações que nunca foram desenhadas para esta realidade.

O paradoxo é fascinante: quanto mais os portugueses produzem a sua própria energia, mais dependentes se tornam da rede nacional. As baterias caseiras ainda são caras, e nos dias sem sol ou vento, todos voltam a depender do sistema tradicional. Esta interdependência criou um novo tipo de relação entre cidadãos e empresas energéticas - nem totalmente independente, nem completamente dependente.

Nos bastidores, surgem modelos de negócio que desafiam todas as convenções. Cooperativas energéticas estão a comprar antigas barragens pequenas que as grandes empresas consideravam não rentáveis. Startups desenvolvem software que permite a um prédio em Faro vender o seu excedente solar a uma fábrica no Norte, sem intermediários. Plataformas de trading de energia entre particulares começam a aparecer, ainda numa zona cinzenta da legislação.

O maior obstáculo, curiosamente, não é tecnológico nem financeiro. É burocrático. Um estudo da APREN revela que o tempo médio para obter licenciamento para uma instalação solar em Portugal é de 147 dias - mais do que em qualquer outro país do sul da Europa. Enquanto isso, em Espanha, o mesmo processo leva 45 dias. Esta lentidão está a criar um mercado paralelo de instalações "informais" que preocupam as autoridades.

O que significa tudo isto para o futuro? Especialistas ouvidos por esta investigação apontam para três cenários possíveis. No primeiro, a descentralização continua gradualmente, integrando-se no sistema existente. No segundo, ocorre uma rutura: as redes locais tornam-se tão autossuficientes que começam a desligar-se da rede nacional. No terceiro - e mais provável segundo a maioria - desenvolve-se um modelo híbrido onde coexistirão megacentrais e microprodutores num equilíbrio instável mas funcional.

Enquanto isso, nas ruas de Portugal, a revolução continua. Não com manifestações ou protestos, mas com a instalação silenciosa de mais um painel solar, mais uma pequena turbina, mais uma bateria comunitária. É uma mudança que acontece telhado a telhado, família a família, desafinando a narrativa tradicional sobre quem produz e quem consome energia. E o mais interessante? Mal começou.

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