A revolução silenciosa: como os portugueses estão a reinventar a energia sem esperar pelo Estado

A revolução silenciosa: como os portugueses estão a reinventar a energia sem esperar pelo Estado
Enquanto os discursos políticos sobre transição energética ecoam em salas climatizadas, uma revolução silenciosa está a acontecer nos telhados, quintais e garagens de Portugal. Não são os grandes projetos que fazem manchetes, mas sim a soma de milhares de pequenas decisões individuais que estão a redesenhar o mapa energético do país. Esta é a história da energia que nasce do chão para cima, contada através das pessoas que decidiram não esperar por soluções vindas de cima.

Nas traseiras de uma mercearia tradicional em Alenquer, o Sr. António, de 68 anos, mostra com orgulho os painéis solares que instalou no telhado do armazém. "Comecei com dois painéis há três anos. Agora tenho doze e só pago um terço do que pagava na eletricidade", conta enquanto aponta para o inversor que parece ter saído de um filme de ficção científica. A sua história repete-se em dezenas de pequenos negócios familiares que descobriram que a independência energética não é um conceito abstrato, mas uma conta que fecha no final do mês.

Mas esta não é apenas uma história de poupança. Nas zonas rurais do Alentejo, agricultores estão a transformar terrenos marginais - aqueles pedaços de terra demasiado pobres para cultivo tradicional - em pequenas centrais de energia renovável. João Pereira, produtor de azeite em Ferreira do Alentejo, explica: "Tenho três hectares onde nada crescia decentemente. Agora tenho painéis solares que alimentam não só a minha adega como a casa de dois vizinhos. Vendemos o excedente à rede." Este modelo de microprodução coletiva está a criar novas economias locais onde antes havia apenas terra abandonada.

O fenómeno mais interessante, porém, está a acontecer nas cidades. Em Lisboa, um grupo de moradores do Bairro Alto criou a primeira comunidade de energia de um edifício histórico classificado. "Foi uma batalha burocrática de dois anos", admite Marta Silva, arquiteta e uma das impulsionadoras do projeto. "Mas conseguimos. Agora os onze apartamentos partilham a energia produzida nos telhados comuns, e temos baterias no cave que armazenam o excesso para usar à noite."

Esta tendência está a forçar as próprias empresas energéticas tradicionais a reinventarem-se. A EDP, por exemplo, lançou recentemente um programa de autoconsumo coletivo que permite a vizinhos partilharem a produção de uma única instalação solar. "Estamos a passar de vendedores de eletricidade a gestores de sistemas energéticos descentralizados", explica um gestor da empresa que prefere não ser identificado. "O cliente já não quer apenas comprar kilowatts - quer controlar, produzir e partilhar."

Nos bastidores desta transformação, há uma geração de engenheiros, instaladores e consultores que está a construir um novo setor praticamente do zero. Pedro Martins, fundador de uma startup de energia solar no Porto, descreve: "Há cinco anos, éramos três pessoas a trabalhar numa garagem. Hoje temos 28 colaboradores e formamos mais de 100 instaladores por ano. A procura cresce 40% ao ano."

Mas nem tudo são rosas neste novo panorama energético. Os especialistas alertam para os riscos de uma transição desordenada. "Temos milhares de pequenas unidades de produção, mas o sistema de distribuição não foi desenhado para esta realidade", adverte Carla Mendes, investigadora do INESC. "Precisamos urgentemente de redes inteligentes que consigam gerir fluxos bidirecionais de energia."

A questão regulatória é outro ponto crítico. A legislação portuguesa, embora tenha avançado significativamente nos últimos anos, ainda apresenta entraves à inovação. "O maior desafio não é tecnológico, é burocrático", queixa-se Ricardo Lopes, que tentou durante 18 meses obter licenças para uma pequena central hidroelétrica num rio do Norte do país. "Perdi a conta aos organismos com que tive de lidar: câmara municipal, Agência Portuguesa do Ambiente, Direção-Geral de Energia e Geologia, e por aí fora."

Paralelamente, surgem novas formas de financiamento que estão a democratizar o acesso às renováveis. Plataformas de crowdfunding permitem que pequenos investidores participem em projetos energéticos. "Juntei 500 euros num parque eólico no Minho através de uma plataforma online", conta Sofia Ramos, professora do secundário. "Recebo um retorno modesto, mas o que realmente me motiva é saber que estou a contribuir para a transição energética."

O que estas histórias revelam é uma mudança profunda na relação dos portugueses com a energia. De consumidores passivos, estão a tornar-se produtores ativos, gestores do seu próprio consumo e até investidores no setor. Esta transformação cultural pode ser mais importante do que qualquer megaprojeto governamental.

No horizonte, vislumbram-se novas possibilidades. As comunidades energéticas locais podem evoluir para verdadeiras micro-redes inteligentes, capazes de operar de forma autónoma em caso de falha da rede principal. A combinação de solar, eólica, baterias e veículos elétricos (que podem funcionar como unidades de armazenamento móveis) promete criar sistemas resilientes e adaptados às necessidades locais.

Enquanto isso, nas escolas, as crianças aprendem não apenas sobre fontes de energia renovável, mas sobre como monitorizar o consumo da sua casa através de aplicações no telemóvel. "O meu filho de 10 anos sabe dizer-me em que horas do dia devemos ligar a máquina de lavar para aproveitar a produção solar", ri-se Maria João, mãe de dois e participante num projeto piloto de educação energética.

Esta revolução silenciosa não faz barulho, não aparece nos noticiários das 20h, mas está a redefinir o que significa ter energia em Portugal. É uma história escrita painel a painel, inversor a inversor, decisão familiar a decisão familiar. E ao contrário das revoluções do passado, esta não precisa de heróis carismáticos - basta cidadãos comuns a tomar o controlo das suas contas da luz e, no processo, do futuro energético do país.

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