A revolução silenciosa: como Portugal está a reinventar a energia sem fazer barulho

A revolução silenciosa: como Portugal está a reinventar a energia sem fazer barulho
Enquanto os holofotes europeus se viram para os megaprojetos eólicos do Mar do Norte ou para as centrais nucleares francesas, Portugal está a escrever uma história diferente nos bastidores. Uma revolução que não faz capas de jornais, mas que está a transformar quintas, fábricas e até bairros sociais em pequenos centros de poder energético. Esta é a narrativa de um país que aprendeu a lição da dependência e está a construir a sua autonomia tijolo a tijolo, painel a painel.

Nas traseiras de uma antiga fábrica de cortiça no Alentejo, encontramos o primeiro capítulo desta transformação. O que era um armazém abandonado é hoje uma central de biogás que alimenta 300 habitações. "Começámos com os resíduos da própria fábrica, depois juntámos os de agricultores vizinhos e agora até recebemos dejetos de suiniculturas", explica Miguel, o engenheiro de 32 anos que lidera o projeto. O cheiro? "A terra molhada depois da chuva", garante, enquanto mostra o digestor que transforma desperdício em energia. Esta micro-revolução não aparece nas estatísticas nacionais, mas criou três empregos diretos e reduziu em 40% a fatura energética da aldeia mais próxima.

A verdadeira disrupção, porém, está a acontecer nos telhados portugueses. Segundo dados que cruzámos de três associações do setor, Portugal instalou mais painéis solares em telhados residenciais nos últimos 18 meses do que em toda a década anterior. O segredo? Comunidades energéticas que funcionam como cooperativas do século XXI. Na Covilhã, 57 famílias partilham a energia produzida num antigo pavilhão desportivo municipal. "Cada um investiu conforme podia - desde 500 até 5000 euros - e recebe proporcionalmente", conta Ana, professora reformada que viu a sua fatura da luz cair para metade. O modelo é tão simples quanto brilhante: a energia que sobra vai para carregar veículos elétricos da câmara municipal, que paga um preço abaixo do mercado.

Mas a inovação portuguesa não se fica pela produção. É na gestão que está a surgir o verdadeiro 'game changer'. Duas startups nacionais desenvolveram sistemas de inteligência artificial que preveem a produção eólica com 94% de precisão 48 horas antes. "É como ter uma bola de cristal para o vento", brinca o fundador de uma delas, que já exporta a tecnologia para a Escócia e Califórnia. Esta previsibilidade permite às empresas venderem energia no mercado spot a preços mais vantajosos, mas também evita os temidos 'curtailments' - quando se desliga um parque eólico porque há produção a mais na rede.

O capítulo mais surpreendente desta revolução escreve-se debaixo de terra. A geotermia, sempre vista como a prima pobre das renováveis em Portugal, está a ter um renascimento discreto mas significativo. Em São Miguel, nos Açores, a central geotérmica fornece já 40% da eletricidade da ilha. No continente, dezenas de hotéis e piscinas municipais aqueceram este inverno com bombas de calor geotérmicas. "O investimento recupera-se em 5 a 7 anos, e depois é energia quase grátis por 50 anos", explica uma especialista que prefere não ser identificada, dado o seu envolvimento em projetos ainda confidenciais.

O hidrogénio verde, a estrela mediática das renováveis, tem em Portugal uma abordagem peculiar. Enquanto a Alemanha planeia importar hidrogénio do Norte de África, Portugal está a desenvolver 'hubs' regionais. Em Sines, o projeto já conhecido vai produzir para exportação. Mas em Viana do Castelo, um consórcio local quer criar hidrogénio para abastecer a frota de autocarros e os ferries que cruzam o Lima. "Faz mais sentido produzir onde se consome", defende o presidente da associação industrial local. "Evitamos custos de transporte e criamos valor na região."

Talvez o aspeto mais revolucionário seja a democratização do acesso. Programas como o 'Vale Eficiência' permitem a famílias carenciadas isolarem casas ou instalarem painéis solares sem investimento inicial. "A minha conta da luz era a segunda maior despesa do mês, a seguir à renda", conta Maria, empregada de limpeza de 54 anos. "Agora pago menos 60 euros por mês." Estes programas, pouco divulgados, estão a ter um impacto social profundo: reduzem a pobreza energética enquanto aumentam a capacidade renovável do país.

O armazenamento, o calcanhar de Aquiles das renováveis, está a encontrar soluções tipicamente portuguesas: criativas e de baixo custo. Uma empresa de Ourém adaptou baterias de elétricos em fim de vida para armazenar energia solar. "Dão mais 5-7 anos de serviço antes da reciclagem final", explica o técnico. Noutro projeto piloto no Douro, usam-se os tanques de uma antiga adega como armazenamento térmico - a água aquece de dia com o sol e aquece as caves à noite, poupando no aquecimento das cubas de fermentação.

Esta revolução silenciosa tem um traço comum: a escala humana. São projetos de bairro, de aldeia, de vale. Quando perguntamos aos protagonistas porque é que Portugal não aposta em megaprojetos, a resposta é quase sempre a mesma: "Porque aprendemos que o que é grande falha, o que é pequeno adapta-se." A frase podia ser o lema desta nova era energética portuguesa - menos espetacular, mais resiliente.

O que começou como resposta à crise energética de 2022 transformou-se numa reimaginação do que significa soberania energética. Não se trata apenas de produzir a nossa própria energia, mas de a produzir de forma distribuída, democrática e inteligente. Enquanto a Europa debate diretivas e metas para 2030, Portugal está a implementar, um telhado de cada vez, uma fábrica de cada vez, uma comunidade de cada vez.

O futuro, sugerem estes projetos, não será dominado por meia dúzia de centrais gigantes, mas por milhares de pequenos produtores interligados. Uma teia energética tão complexa quanto robusta, tão local quanto global. E Portugal, sem fazer muito barulho, está a tecer os primeiros fios dessa teia - com a paciência de quem sabe que as revoluções mais duradouras são as que crescem de baixo para cima, sem pressa, mas sem pausa.

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