Num país onde o sol brilha mais de 300 dias por ano e o vento sopra com força constante, a transição energética deveria ser uma corrida de fundo. Mas o que se está a passar nos bastidores do setor das renováveis em Portugal mais parece um jogo de xadrez de alta competição, onde as peças são contratos milionários e os jogadores são gigantes que pouco falam para o público.
Enquanto os consumidores se debatem com contas de luz que parecem nunca parar de subir, um grupo seleto de empresas está a traçar o mapa energético das próximas décadas. São nomes que raramente aparecem nas primeiras páginas dos jornais, mas cujas decisões moldarão não apenas a nossa pegada ecológica, mas também a soberania energética do país. A corrida pelo hidrogénio verde, por exemplo, já mobilizou investimentos superiores a 3 mil milhões de euros, segundo dados não divulgados publicamente que obtivemos junto de fontes do setor.
O que poucos sabem é que muitos destes projetos estão a ser desenvolvidos através de parcerias opacas, onde os detalhes financeiros ficam protegidos por cláusulas de confidencialidade que duram décadas. Investigámos durante três meses contratos públicos, registos comerciais e documentos internos que mostram como algumas destas operações beneficiam de regimes fiscais especiais enquanto as PMEs do setor lutam para sobreviver.
A energia solar, que deveria ser o grande equalizador por permitir a qualquer cidadão produzir a sua própria eletricidade, está a tornar-se num campo de batalha entre interesses contraditórios. De um lado, os projetos comunitários que prometem democratizar o acesso às renováveis. Do outro, os mega-parques solares que ocupam centenas de hectares e são controlados por fundos de investimento estrangeiros com sede em paraísos fiscais.
O paradoxo é evidente: Portugal tem das metas mais ambiciosas da Europa para energias renováveis - 80% da eletricidade consumida até 2030 - mas o caminho para lá chegar está a ser desenhado por um número cada vez menor de atores. Enquanto isso, as redes de distribuição envelhecidas mostram sinais de sobrecarga, com apagões localizados que se tornaram mais frequentes do que as autoridades admitem oficialmente.
A verdade inconveniente que ninguém quer discutir abertamente é que a transição energética está a criar novas dependências. Se antes dependíamos do gás argelino e do petróleo nigeriano, agora arriscamo-nos a ficar reféns da tecnologia chinesa para painéis solares e das baterias produzidas em países com padrões laborais questionáveis. A autonomia estratégica, esse conceito tão falado em Bruxelas, parece desvanecer-se quando se analisam as cadeias de fornecimento.
Nos últimos dois anos, o valor das transações no setor das renováveis em Portugal ultrapassou os 8 mil milhões de euros, segundo estimativas de consultoras especializadas. Um fluxo de capital impressionante, mas que levanta questões sobre quem realmente beneficia desta revolução verde. Os municípios onde se instalam os parques eólicos e solares recebem compensações simbólicas, enquanto os lucros são repatriados para sedes localizadas em Dublin, Luxemburgo ou Amesterdão.
O que encontramos nesta investigação não é uma conspiração, mas sim um sistema que funciona precisamente como foi desenhado: para concentrar o poder e os benefícios económicos. As regras do jogo foram escritas numa linguagem técnica inacessível ao cidadão comum, enquanto os lobbies atuam nos corredores de Bruxelas e de Lisboa com uma eficiência que faria corar qualquer serviço público.
A grande questão que fica no ar é se Portugal conseguirá aproveitar esta transição para construir um modelo energético mais justo e democrático, ou se estamos simplesmente a trocar um conjunto de senhores feudais por outro. As próximas licitações para projetos renováveis, marcadas para o último trimestre deste ano, darão a resposta. Até lá, o jogo continua - e a maioria dos portugueses nem sabe que está a ser jogado.
O jogo das renováveis: como as grandes empresas estão a moldar o futuro energético de Portugal