Há uma revolução silenciosa a acontecer nas colinas de Trás-os-Montes e nas planícies alentejanas. Painéis solares que cintilam ao sol como lagos de prata, turbinas eólicas que desenham círculos hipnóticos no céu — Portugal está a transformar-se num laboratório vivo da transição energética. Mas por detrás desta paisagem futurista esconde-se um emaranhado de interesses, desafios técnicos e decisões políticas que poucos compreendem na totalidade.
A primeira pergunta que salta à mente é: quem está a ganhar com esta corrida às renováveis? Os números são eloquentes — em 2023, as fontes renováveis representaram 61% do consumo eléctrico nacional, um recorde histórico que colocou Portugal na vanguarda europeia. Mas os benefícios não estão a ser distribuídos de forma equitativa. Enquanto as grandes empresas energéticas anunciam lucros recorde, muitas famílias continuam a debater-se com contas de electricidade que consomem uma fatia significativa do orçamento mensal.
O paradoxo é evidente: produzimos energia mais barata do que nunca, mas pagamos preços que parecem desconectados da realidade. A explicação reside no complexo mecanismo de formação de preços no mercado ibérico MIBEL, onde o gás natural — ainda necessário para cobrir picos de consumo — continua a ditar o preço final. É como se estivéssemos a misturar vinho fino com água da torneira e a vender a garrafa ao preço do melhor vintage.
Nos bastidores desta transformação, surgem histórias fascinantes de comunidades que tomaram o destino nas próprias mãos. Em Miranda do Douro, um grupo de agricultores uniu-se para criar uma cooperativa de energia solar que abastece não apenas as suas explorações, mas também parte da vila. "Já não somos apenas produtores de azeite ou amêndoas", diz-nos João Mendes, presidente da cooperativa. "Somos produtores de energia, e isso dá-nos uma autonomia que há dez anos seria impensável."
Esta micro-revolução local contrasta com os mega-projectos que dominam as manchetes. O hidrogénio verde, apresentado como a bala de prata da descarbonização, mobiliza investimentos de milhares de milhões. Sines prepara-se para se tornar um hub europeu desta tecnologia, mas especialistas alertam para os riscos de criar uma nova dependência. "Estamos a substituir a dependência do gás russo pela dependência de electrolisadores chineses", nota uma investigadora do Instituto Superior Técnico que prefere manter o anonimato.
O armazenamento de energia emerge como o próximo grande desafio. As barragens com bombagem reversível — que funcionam como baterias gigantes — são parte da solução, mas a sua construção enfrenta resistências ambientais e sociais. Tecnologias emergentes, como baterias de fluxo ou armazenamento térmico, prometem alternativas, mas ainda estão numa fase embrionária. Enquanto isso, continuamos a desperdiçar energia renovável em dias de vento forte ou sol radiante, simplesmente porque não temos onde a guardar.
A digitalização das redes eléctricas abre outro capítulo nesta saga. Contadores inteligentes, tarifas dinâmicas, veículos eléctricos que devolvem energia à rede — conceitos que parecem saídos de ficção científica estão a tornar-se realidade. Mas esta transformação digital traz consigo questões de privacidade e segurança cibernética que ainda não foram totalmente abordadas. Quem tem acesso aos nossos dados de consumo? Como proteger infra-estruturas críticas de ataques?
No meio deste turbilhão tecnológico, não podemos esquecer a dimensão humana. A transição energética está a criar novos empregos — técnicos de manutenção de parques eólicos, instaladores de painéis solares, especialistas em eficiência energética — mas também a tornar obsoletas outras profissões. O desafio da requalificação é tão urgente como o da descarbonização.
Olhando para o horizonte, vemos que o caminho está longe de ser linear. Os atrasos no licenciamento, a escassez de matérias-primas para baterias, a dependência de tecnologias estrangeiras — são obstáculos reais num percurso cheio de promessas. Mas há também sinais de esperança: a criatividade dos empreendedores portugueses, a resiliência das comunidades, a qualidade da investigação científica nacional.
O que está em jogo vai muito além de quilowatts-hora ou toneladas de CO2 evitadas. Trata-se de redefinir a nossa relação com a energia — deixar de ser consumidores passivos para nos tornarmos protagonistas activos. Trata-se de construir um sistema mais democrático, mais resiliente, mais justo. A revolução energética já começou. Resta saber se seremos espectadores ou arquitectos do novo mundo que está a nascer.
O labirinto energético: como as renováveis estão a mudar o jogo em Portugal