O lado obscuro da transição energética: quem está a ficar para trás na corrida às renováveis

O lado obscuro da transição energética: quem está a ficar para trás na corrida às renováveis
Enquanto os holofotes se concentram nos megaprojetos eólicos e solares que prometem revolucionar o setor energético português, uma realidade paralela desenrola-se nos bastidores. A transição verde, apregoada como solução para todos os males ambientais, está a criar vencedores e perdedores de forma pouco transparente. As comunidades rurais, outrora guardiãs do território, veem-se agora confrontadas com parques eólicos que alteram irremediavelmente as paisagens que durante séculos preservaram.

Nos concelhos do interior, onde a desertificação já era uma ferida aberta, chegam agora as promessas de desenvolvimento através da energia renovável. Mas os contratos são assinados em gabinetes com ar condicionado, a centenas de quilómetros de distância, enquanto os autarcas locais lutam por garantir que alguma da riqueza gerada permaneça nas terras que a acolhem. O paradoxo é evidente: as regiões que menos consomem energia são as que mais a produzem, sem verem refletido nos seus orçamentos municipais o justo retorno pelo sacrifício paisagístico.

A corrida aos leilões de capacidade renovável transformou-se num jogo de poder onde os mesmos de sempre levam a melhor. As grandes utilities nacionais e multinacionais disputam entre si os melhores lotes, enquanto os pequenos produtores e cooperativas locais esbarram em barreiras burocráticas e exigências financeiras que os excluem do processo. A descentralização energética, tão falada nos fóruns especializados, continua a ser mais teoria do que prática.

Os números oficiais mostram um crescimento impressionante da capacidade instalada em renováveis, mas escondem uma concentração preocupante. Cinco grupos controlam mais de 60% da produção eólica nacional, enquanto no solar a situação não é muito diferente. Esta oligopolização do setor coloca em risco a tão desejada resiliência do sistema e mantém os preços artificialmente elevados, contrariando a promessa inicial de energia mais barata para todos.

A burocracia tornou-se o maior entrave à inovação. Um produtor que queira instalar painéis solares no telhado de um armazém enfrenta meses de espera por licenças, enquanto os grandes projetos beneficiam de vias verdes criadas à sua medida. Esta dualidade de critérios está a estrangular o potencial de microgeração que poderia democratizar verdadeiramente o acesso à produção de energia.

Os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência deviam ser a alavanca para uma transição justa, mas a sua distribuição segue padrões que repetem os erros do passado. Os projetos de grande escala, com custos unitários mais elevados, absorvem a maior fatia do financiamento, deixando as soluções comunitárias e locais à míngua de recursos. A miopia estratégica pode custar caro ao país no longo prazo.

A digitalização do setor energético traz novas ameaças à privacidade dos consumidores. Os contadores inteligentes recolhem dados detalhados sobre os nossos hábitos de consumo, criando perfis comportamentais que são depois comercializados sem o nosso consentimento explícito. A fronteira entre eficiência energética e vigilância digital torna-se cada vez mais ténue.

As interligações com o mercado europeu, apresentadas como solução para a segurança do abastecimento, mostram as suas fragilidades em períodos de crise. Quando a procura aumenta no continente, os preços em Portugal disparam, mesmo com produção nacional suficiente para as nossas necessidades. A integração tornou-nos reféns de volatilidades alheias, sem os mecanismos de proteção necessários.

A formação profissional não acompanha a velocidade das mudanças tecnológicas. Instaladores qualificados em energias renováveis são escassos, obrigando as empresas a importar mão-de-obra especializada enquanto milhares de portugueses permanecem desempregados. Esta lacuna na qualificação pode comprometer toda a estratégia de descarbonização.

A armadilha dos combustíveis fósseis mantém-se, mesmo no setor das renováveis. Os componentes para turbinas eólicas e painéis solares dependem de minerais raros cuja extração gera impactos ambientais devastadores noutras partes do globo. A nossa transição verde está, ironicamente, a alimentar cadeias de abastecimento pouco sustentáveis.

A governança do setor carece de transparência. As decisões que moldam o futuro energético do país são tomadas em comissões técnicas onde os mesmos especialistas circulam entre cargos públicos e privados, criando conflitos de interesse que raramente são devidamente escrutinados. A ausência de uma verdadeira participação pública no processo decisório mina a legitimidade da própria transição.

As soluções existem, mas exigem coragem política para serem implementadas. As comunidades energéticas locais, os esquemas de partilha de renováveis entre vizinhos e os modelos de financiamento coletivo mostram que é possível fazer diferente. Só falta a vontade de quebrar os monopólios instalados e dar voz aos que até agora foram silenciados no debate energético.

O momento é crucial. As escolhas que fizermos nos próximos meses determinarão se a transição energética será um motor de equidade social ou mais um capítulo na história da concentração de riqueza e poder. A energia pode ser renovável, mas a oportunidade de construir um sistema mais justo é finita e está a esgotar-se.

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