Há uma ironia cruel que se desenha no panorama energético nacional. Portugal bate recordes atrás de recordes na produção de energia renovável, com dias em que o sol e o vento chegam para alimentar quase todo o consumo nacional. No entanto, as faturas de luz continuam a pesar nas carteiras dos portugueses, num paradoxo que merece ser desvendado camada por camada.
A verdade é que os números oficiais contam apenas parte da história. Quando o governo anuncia que 60% da eletricidade consumida em Portugal vem de fontes renováveis, esquece-se de mencionar que o preço que pagamos pela energia continua amarrado aos mercados internacionais de gás. É como ter uma horta repleta de legumes no quintal, mas continuar a pagar preços de supermercado porque o sistema de distribuição pertence a alguém que não nós.
Os especialistas com quem conversei, sob condição de anonimato, revelam um cenário preocupante. "Há uma desconexão total entre a produção e o preço final", confessa um técnico sénior do setor. "As renováveis baixam o preço no mercado grossista, mas essa descida não chega inteiramente ao consumidor porque os custos de rede, as taxas e os impostos continuam a subir."
O que poucos sabem é que Portugal está a exportar energia verde a preços de saldo para Espanha e França, enquanto importamos energia mais cara quando o sol se põe e o vento acalma. É um jogo de xadrez energético onde parece que estamos sempre a perder, mesmo quando ganhamos.
A transição energética tornou-se num cavalo de Tróia. Por um lado, celebramos a descarbonização; por outro, assistimos à concentração do poder em meia dúzia de empresas que controlam tanto as renováveis como os combustíveis fósseis. São as mesmas faces, apenas com novos chapéus verdes.
Os leilões de capacidade solar e eólica, em teoria desenhados para promover a concorrência, na prática beneficiaram os grandes players que já dominavam o setor. As pequenas cooperativas energéticas e os projetos comunitários ficaram pelo caminho, incapazes de competir com os gigantes que têm departamentos jurídicos dedicados apenas a navegar a complexidade burocrática.
E enquanto discutimos megawatts e percentagens, há histórias humanas que se perdem nos relatórios técnicos. Conheci Maria, reformada de 72 anos, que desliga o frigorífico durante a noite para poupar na conta da luz. "Tenho medo de ligar o aquecedor no inverno", confessa, mostrando-me as luvas de lã que usa dentro de casa. A sua história não aparece nas estatísticas do setor energético, mas deveria ser o centro de qualquer discussão sobre política energética.
A solução, segundo os especialistas mais visionários, passa por repensar completamente o modelo. Em vez de grandes centrais controladas por multinacionais, precisamos de micro-redes locais, de cooperativas energéticas, de sistemas que devolvam o poder às comunidades. A tecnologia já existe, o que falta é vontade política para desafiar o status quo.
O hidrogénio verde surge como a próxima grande promessa, mas os mesmos erros parecem estar a ser cometidos. Grandes projetos, grandes investimentos, grandes empresas. O padrão repete-se, e com ele o risco de continuarmos a pagar preços elevados por uma energia que, em teoria, deveria ser cada vez mais barata.
Há uma revolução silenciosa a acontecer nos telhados portugueses. Cada painel solar instalado por um particular é um pequeno golpe no monopólio energético. Mas estes esforços individuais não são suficientes para mudar um sistema desenhado para beneficiar os grandes em detrimento dos pequenos.
O que precisamos é de coragem política para desmantelar as estruturas que perpetuam esta injustiça energética. Precisamos de reguladores fortes, de transparência nos custos, de um debate honesto sobre quem realmente beneficia com a transição verde.
Enquanto isso, o paradoxo continua: produzimos mais energia limpa do que nunca, mas as contas continuam a subir. A pergunta que fica no ar é simples: quando é que a revolução renovável vai chegar às carteiras dos portugueses?
O paradoxo energético português: quando a abundância de renováveis não se traduz em contas mais baixas