Há uma ironia cruel que percorre o setor energético português: enquanto o país bate recordes na produção de energia renovável, os portugueses continuam a sentir o peso das contas da luz como se vivessem numa nação dependente de combustíveis fósseis. Esta contradição tornou-se o elefante na sala que ninguém quer verdadeiramente abordar.
Nos últimos meses, Portugal alcançou marcos históricos. Durante 149 horas consecutivas, o país funcionou exclusivamente com energia renovável. Os parques eólicos e solares multiplicam-se por todo o território, transformando a paisagem nacional num gigantesco laboratório de transição energética. Os números são impressionantes, quase cinematográficos, mas escondem uma realidade menos glamorosa.
Enquanto os relatórios oficiais celebram estes sucessos, as famílias portuguesas enfrentam facturas que parecem saídas de um romance distópico. O preço da eletricidade para consumidores domésticos mantém-se entre os mais elevados da Europa, criando um fosso entre a retórica política e a experiência quotidiana das pessoas. Esta desconexão revela falhas estruturais que vão muito além dos meros números de produção.
O problema central reside no modelo de comercialização e distribuição. Apesar da energia ser produzida a custos cada vez mais baixos, os consumidores finais não beneficiam destas economias. As redes de distribuição, os custos de sistema e os impostos criam uma barreira quase intransponível entre a produção barata e o consumo acessível.
A complexidade do mercado grossista de eletricidade funciona como um casino onde os grandes players apostam no preço da energia, enquanto os pequenos consumidores pagam a conta. Os mecanismos de formação de preços tornaram-se tão opacos que mesmo especialistas têm dificuldade em explicar porque é que a energia mais barata da história se traduz em contas entre as mais caras da Europa.
As renováveis trouxeram outro paradoxo: a necessidade de backup. Quando o sol não brilha e o vento não sopra, o sistema precisa de fontes convencionais para manter a estabilidade. Estas centrais a gás ou carvão, que funcionam em regime intermitente, têm custos fixos elevados que são depois distribuídos por todos os consumidores.
A transição energética está a criar novos desequilíbrios regionais. Enquanto o interior se enche de painéis solares e aerogeradores, os benefícios económicos nem sempre ficam nas comunidades locais. Grandes grupos energéticos controlam a maioria dos projetos, criando uma concentração de riqueza que contrasta com o despovoamento destas regiões.
O armazenamento de energia emerge como o Santo Graal desta transição. As baterias em grande escala e o hidrogénio verde prometem resolver o problema da intermitência, mas os investimentos necessários são colossais. Portugal posiciona-se como potencial exportador de hidrogénio para o norte da Europa, mas o risco é que se torne mais uma vez fornecedor de matéria-prima barata para países que depois a transformam em produtos de alto valor.
As comunidades energéticas surgem como alternativa promissora, permitindo que grupos de cidadãos produzam e partilhem a sua própria energia. No entanto, a burocracia e os entraves regulatórios mantêm estas iniciativas num estado quase experimental, quando poderiam ser a chave para uma democratização real do setor.
A eficiência energética continua a ser o parente pobre das políticas públicas. Programas de apoio à renovação de edifícios existem, mas são insuficientes face à dimensão do parque habitacional antigo e ineficiente. Enquanto não resolvermos o problema do consumo, estaremos sempre a correr atrás do prejuízo.
O setor dos transportes representa outro desafio colossal. A eletrificação da frota automóvel avança, mas sem uma rede de carregamento adequada e sem preços de eletricidade competitivos, o risco é substituir a dependência do petróleo pela dependência de uma eletricidade cara.
Os próximos anos serão decisivos. Os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência representam uma oportunidade única para corrigir estas distorções. O desafio será garantir que o dinheiro chega onde é realmente necessário e não apenas alimenta os lucros das grandes empresas do setor.
A verdadeira revolução energética não se mede apenas pela percentagem de renováveis na produção, mas pela capacidade de tornar a energia acessível a todos os cidadãos. Enquanto esta equação não for resolvida, Portugal continuará a ser um caso de estudo paradoxal: um país que produz energia limpa como poucos, mas onde essa abundância não se traduz em bem-estar para a população.
O futuro energético português depende da capacidade de criar um modelo mais justo e transparente. As tecnologias existem, os recursos naturais abundam, falta apenas a vontade política para construir um sistema que sirva verdadeiramente as pessoas. Até lá, continuaremos a navegar neste paradoxo onde a abundância convive com a escassez, dependendo do lado do contador em que nos encontramos.
O paradoxo energético português: quando a abundância não chega ao bolso dos consumidores