Num país banhado por mais de 300 dias de sol por ano e com ventos que moldaram a história dos descobrimentos, Portugal vive um dos maiores paradoxos energéticos da Europa moderna. Enquanto os números oficiais celebram recordes de produção renovável, as famílias continuam a abrir contas de luz que parecem escritas em hieróglifos financeiros.
Os dados são conhecidos: em 2023, as renováveis representaram 61% do consumo eléctrico nacional, um feito histórico que coloca Portugal no pelotão da frente da transição energética europeia. Mas esta vitória estatística esconde uma realidade mais complexa, onde o sucesso macroeconómico não se traduz em alívio microeconómico para quem paga as faturas no final do mês.
A verdade é que os portugueses estão a pagar preços acima da média europeia por uma electricidade que, em teoria, deveria ser cada vez mais barata. O custo de produção da energia solar caiu 89% na última década, segundo a International Renewable Energy Agency, mas essa descida não se reflecte proporcionalmente nas tarifas domésticas. Porquê? A resposta está num labirinto regulatório que mistura custos de rede, taxas e impostos com a complexidade dos mercados grossistas.
O sistema eléctrico nacional tornou-se numa espécie de casino de alta tecnologia, onde os preços são definidos hora a hora num leilão virtual que poucos compreendem. Nos dias de vento forte e sol radiante, os preços despencam, chegando mesmo a valores negativos - pagamos para consumir energia. Mas nas noites de inverno, quando o vento acalma e o sol se põe, as centrais a gás natural entram em acção e os preços disparam.
Esta volatilidade criou oportunidades para novos players no mercado. As comunidades energéticas multiplicam-se pelo país, desde o Algarve até Trás-os-Montes, permitindo que grupos de cidadãos produzam e partilhem a sua própria energia. Em Coruche, uma cooperativa solar abastece 40 famílias com electricidade 30% mais barata que a das comercializadoras tradicionais. Em Paredes, um condomínio instalou painéis partilhados que cobrem 70% das necessidades comuns.
Mas estes casos de sucesso ainda são gotas num oceano de dependência das grandes utilities. A burocracia continua a ser o maior inimigo da descentralização energética. Um produtor particular que queira injectar energia na rede enfrenta um processo que pode levar seis meses e exigir dezenas de documentos diferentes.
O armazenamento de energia emerge como o Santo Graal desta transição. As baterias domésticas tornaram-se mais acessíveis, mas o investimento ainda é proibitivo para muitas famílias. Enquanto isso, as grandes barragens com bombagem - as "baterias naturais" do sistema - operam abaixo da sua capacidade potencial devido a limitações ambientais e de licenciamento.
O hidrogénio verde promete revolucionar o panorama, mas os projectos anunciados com pompa e circunstância enfrentam atrasos significativos. A meta de 2 GW de capacidade instalada até 2030 parece cada vez mais distante, enquanto os fundos europeus aguardam por projectos maduros.
Na frente da mobilidade eléctrica, Portugal apresenta outro contraste curioso. Temos uma das redes de carregamento mais densas da Europa, mas a adopção de veículos eléctricos continua abaixo das expectativas. O preço de entrada mantém-se elevado e os incentivos fiscais revelam-se insuficientes para convencer os portugueses medianos.
O gás natural, esse parente pobre da transição energética, continua a ser essencial para a segurança do abastecimento. A terminal de Sines transformou-se num hub estratégico para a Europa, mas a dependência do GNL levanta questões geopolíticas delicadas num mundo cada vez mais fracturado.
O que falta então para que os portugueses sintam no bolso o sucesso da sua transição energética? Talvez a resposta esteja na necessidade de uma reforma profunda do mercado eléctrico, que desacople o preço da electricidade renovável do custo do gás natural. Ou na aceleração dos processos de licenciamento para projectos descentralizados. Ou ainda na criação de mecanismos que permitam às famílias beneficiar directamente dos momentos de abundância energética.
Enquanto isso, continuamos na estranha posição de sermos campeões europeus na produção de energia limpa, mas alunos medianos na sua distribuição equitativa. O sol português brilha para todos, mas a sua energia ainda não aquece todas as carteiras por igual.
O paradoxo energético português: quando a abundância não chega ao bolso dos portugueses
