A factura da luz chegou e, mais uma vez, o susto foi inevitável. Nas cozinhas portuguesas, o ritual repete-se mês após mês: o envelope azul da EDP é aberto com apreensão, os olhos percorrem rapidamente os números até ao valor final e o suspiro profundo que se segue é quase tão pesado quanto o montante a pagar. Mas o que está realmente por trás desta crise energética que parece não ter fim?
A resposta, como quase tudo na vida, é complexa e multifacetada. Desde a guerra na Ucrânia aos problemas estruturais do mercado ibérico de electricidade, passando pela nossa dependência do gás natural e pelas falhas na aposta nas renováveis - estamos perante um puzzle onde cada peça ajuda a explicar por que razão os portugueses continuam a pagar preços acima da média europeia.
O MIBEL, o mercado ibérico de electricidade que une Portugal e Espanha desde 2007, tem sido tanto uma bênção como uma maldição. Por um lado, permitiu-nos partilhar recursos e aumentar a segurança do abastecimento. Por outro, criou um sistema onde o preço é determinado pela tecnologia mais cara necessária para satisfazer a procura - quase sempre centrais a gás. E quando o gás dispara nos mercados internacionais, como aconteceu nos últimos anos, toda a electricidade transaccionada fica mais cara, mesmo a que vem do sol e do vento.
Mas será que estamos condenados a esta espiral de preços? A resposta curta é não. A resposta longa exige que olhemos para além das manchetes alarmistas e entendamos as transformações em curso no sector energético português. A verdade é que estamos numa encruzilhada histórica, onde as decisões que tomarmos hoje vão moldar o nosso futuro energético para as próximas décadas.
A revolução das renováveis está a ganhar velocidade em Portugal, embora ainda não ao ritmo necessário. Os leilões solares têm batido recordes de preços baixos, as comunidades energéticas começam a surgir um pouco por todo o país e o hidrogénio verde promete ser a próxima fronteira. Mas entre a promessa e a realidade existe ainda um abismo de burocracia, licenciamentos morosos e investimento insuficiente em redes inteligentes.
O caso do hidrogénio verde é particularmente revelador. Portugal tem condições excepcionais para se tornar um player global nesta tecnologia - sol em abundância, costa extensa e posição geográfica estratégica. Os projectos anunciados são ambiciosos, mas a verdade é que ainda estamos na fase das intenções. Enquanto outros países avançam a ritmo acelerado, nós continuamos presos aos estudos de impacto ambiental e às disputas sobre onde instalar os electrolisadores.
A eficiência energética continua a ser o parente pobre das políticas públicas. Os programas de apoio existem, é verdade, mas são insuficientes face à dimensão do desafio. As habitações portuguesas, especialmente as mais antigas, são autênticos coladores de energia. Isolar paredes, substituir janelas, instalar painéis solares - estas medidas poderiam reduzir drasticamente as facturas das famílias, mas esbarram sempre no mesmo obstáculo: o custo inicial.
E aqui surge uma das grandes ironias desta crise: nunca houve tanto dinheiro disponível para a transição energética. Entre os fundos da bazuca europeia e os programas nacionais, há verbas que chegam para transformar radicalmente o nosso parque habitacional. O problema não é a falta de recursos, mas sim a capacidade de os aplicar de forma eficiente e rápida.
O transporte é outra frente onde a batalha energética se trava diariamente. A electrificação da frota automóvel avança, mas a um ritmo que deixa muitas dúvidas sobre a capacidade de cumprir as metas estabelecidas. Os pontos de carregamento ainda são insuficientes, especialmente fora dos grandes centros urbanos, e o preço dos veículos eléctricos continua fora do alcance de muitas famílias.
Mas talvez o aspecto mais preocupante desta crise seja o seu impacto social. Cada aumento na factura da energia significa menos dinheiro para alimentação, saúde ou educação. As famílias de baixos rendimentos são as mais afectadas, já que gastam uma percentagem maior do seu orçamento em utilities. E enquanto os apoios sociais ajudam, não resolvem o problema de fundo: um sistema energético que penaliza quem menos pode.
A solução, se é que existe uma única solução, passa por uma abordagem integrada que combine investimento em renováveis, modernização das redes, programas massivos de eficiência energética e mecanismos de protecção social mais robustos. Não basta baixar o IVA ou criar tarifas sociais - é preciso atacar as causas estruturais do problema.
O momento é de oportunidade, apesar de todas as dificuldades. A crise energética forçou-nos a encarar realidades incómodas, mas também abriu espaço para mudanças que há muito eram necessárias. A questão que se coloca agora é se teremos a coragem e a visão para aproveitar esta janela de oportunidade, ou se vamos continuar a remendar um sistema que já mostrou todas as suas limitações.
O futuro energético de Portugal está a ser escrito agora, nas salas de reuniões em Bruxelas, nos laboratórios de investigação, nas assembleias municipais que aprovam projectos de comunidades energéticas e, claro, nas cozinhas dos portugueses que todos os meses abrem a factura da luz com o coração nas mãos. A pergunta que fica no ar é simples: que história queremos contar às gerações futuras sobre como respondemos a este desafio?
O preço da energia em Portugal: entre a crise e as oportunidades de mudança