O silêncio que fala: como a perda auditiva está a moldar as nossas relações

O silêncio que fala: como a perda auditiva está a moldar as nossas relações
Há um som que está a desaparecer das nossas vidas, e poucos se apercebem da sua ausência. Não é o canto dos pássaros nas manhãs de primavera, nem o murmúrio dos riachos. É o som das conversas à mesa de jantar, das piadas partilhadas entre amigos, dos segredos sussurrados ao ouvido. A perda auditiva não chega com estrondo - chega com silêncio.

Imagine estar num restaurante movimentado e ouvir apenas fragmentos da conversa. As palavras chegam como peças soltas de um puzzle que nunca se completa. Esta é a realidade diária de mais de 400 mil portugueses que vivem com perda auditiva significativa. E o número está a crescer, alimentado pelo envelhecimento da população e pela exposição constante ao ruído nas cidades.

O que mais preocupa os especialistas não é apenas a perda em si, mas o seu efeito dominó nas relações humanas. Quando deixamos de ouvir, começamos a isolar-nos. As reuniões familiares tornam-se exercícios de frustração, os jantares com amigos transformam-se em espetáculos de que somos meros espectadores. A comunicação, esse pilar fundamental da nossa humanidade, começa a ruir.

A tecnologia moderna oferece soluções, mas também criou novos problemas. Os auriculares que nos acompanham para todo o lado, as salas de concertos com decibéis perigosos, o ruído constante do trânsito - tudo contribui para um ambiente hostil aos nossos ouvidos. E enquanto os jovens abusam do volume nos seus dispositivos, os mais velhos muitas vezes negam o problema, atribuindo as dificuldades auditivas ao 'envelhecimento natural'.

Mas há esperança no horizonte. Os aparelhos auditivos evoluíram de dispositivos volumosos e pouco discretos para soluções quase invisíveis e inteligentes. Alguns modelos modernos conseguem ligar-se diretamente ao telemóvel, transmitir música em alta qualidade e até traduzir idiomas em tempo real. A tecnologia deixou de ser apenas uma correção para se tornar uma extensão das nossas capacidades.

O verdadeiro desafio, contudo, não é tecnológico - é cultural. Em Portugal, ainda existe um estigma associado ao uso de aparelhos auditivos. Muitos encaram-nos como um símbolo de velhice ou incapacidade, quando na realidade deveriam ser vistos como óculos para os ouvidos. Esta perceção precisa de mudar, e a mudança começa pela educação e pela normalização.

As empresas estão a adaptar-se a esta nova realidade. Restaurantes com melhor acústica, teatros com sistemas de amplificação, locais de trabalho com políticas de proteção auditiva - pequenas mudanças que fazem uma grande diferença na vida de quem luta para ouvir. E não se trata apenas de acessibilidade: trata-se de inclusão social.

O que muitas pessoas não percebem é que a saúde auditiva está intimamente ligada à saúde cognitiva. Estudos recentes mostram que a perda auditiva não tratada pode acelerar o declínio mental e aumentar o risco de demência. O cérebro, privado de estímulos sonoros, começa a atrofiar. Manter os ouvidos saudáveis é, portanto, uma questão de saúde pública.

Como sociedade, precisamos de falar mais abertamente sobre este tema. Precisamos de campanhas de sensibilização que cheguem a todas as idades, de consultas regulares de audiologia como parte dos check-ups de rotina, de políticas que protejam os trabalhadores da exposição ao ruído excessivo.

A solução passa por uma abordagem integrada: prevenção através da educação, deteção precoce através de rastreios regulares, e intervenção através de tecnologia adaptada a cada caso. Mas acima de tudo, passa por compreender que ouvir bem não é um luxo - é um direito fundamental que afeta a nossa qualidade de vida, as nossas relações e a nossa felicidade.

O silêncio pode ser dourado, mas o som da vida partilhada é insubstituível. Cabe a cada um de nós garantir que continuamos a ouvi-lo, em todas as suas nuances e belezas.

Subscreva gratuitamente

Terá acesso a conteúdo exclusivo, como descontos e promoções especiais do conteúdo que escolher:

Tags

  • saúde auditiva
  • perda auditiva
  • aparelhos auditivos
  • relações sociais
  • bem-estar