Num café de Lisboa, enquanto o ruído da cidade invade a esplanada, Maria, 68 anos, ajusta discretamente o seu aparelho auditivo. 'Durante anos, fingi que entendia as conversas', confessa, enquanto o café esfria. 'A pior parte não é deixar de ouvir os pássaros - é deixar de ouvir os netos.' Esta é uma realidade silenciosa que afeta cerca de 900 mil portugueses, segundo dados da Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia, mas que raramente é discutida abertamente.
A perda auditiva não escolhe idades. Enquanto associamos naturalmente a surdez ao envelhecimento, cada vez mais jovens enfrentam desafios auditivos prematuros. João, 32 anos, desenvolveu zumbidos constantes após anos de concertos de rock sem proteção adequada. 'Pensava que era invencível', admite, enquanto mostra uma aplicação no telemóvel que monitoriza os níveis de ruído a que se expõe diariamente. Os fones, outrora símbolo de modernidade, tornaram-se numa espada de dois gumes - proporcionam privacidade sonora enquanto expõem os tímpanos a níveis perigosos.
Nos bastidores da ciência auditiva portuguesa, investigadores da Universidade do Porto estão a desenvolver tecnologias que prometem revolucionar a forma como encaramos a audição. 'Estamos a trabalhar em aparelhos que não apenas amplificam o som, mas que aprendem com o ambiente do utilizador', explica a Dra. Sofia Martins, engenheira biomédica. A próxima geração de dispositivos poderá distinguir automaticamente entre uma conversa num restaurante barulhento e o canto dos pássaros num parque, adaptando-se em milésimos de segundo.
Mas a tecnologia tem um preço - literalmente. Enquanto os aparelhos auditivos de última geração podem custar mais de 3.000 euros, muitos portugueses recorrem a soluções improvisadas. Nas feiras populares do norte do país, ainda se vendem 'amplificadores auditivos' não regulamentados por preços irrisórios. 'São perigosos', alerta o Dr. Ricardo Silva, audiologista. 'Amplificam tudo, incluindo ruídos prejudiciais, e podem causar danos irreversíveis.'
A relação entre audição e saúde mental é outra faceta pouco explorada. Estudos recentes do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto revelam que pessoas com perda auditiva não tratada têm 50% mais probabilidade de desenvolver depressão. 'O isolamento social que resulta da dificuldade em comunicar é devastador', explica a psicóloga Carla Mendes. 'Muitos pacientes descrevem-no como estar numa bolha de vidro - vêem o mundo, mas não conseguem participar nele plenamente.'
Nas escolas portuguesas, um projeto pioneiro está a mudar paradigmas. Em Braga, crianças do primeiro ciclo aprendem sobre saúde auditiva através de jogos interativos. 'Ensinamos que proteger os ouvidos é tão importante como escovar os dentes', diz a professora Ana Lopes, enquanto mostra aos alunos como medir o volume dos seus fones. Esta geração poderá ser a primeira a envelhecer com a audição intacta, se as lições forem aprendidas.
O mercado português de aparelhos auditivos vive uma transformação silenciosa. Enquanto as grandes multinacionais dominam o setor, startups nacionais estão a desenvolver soluções mais acessíveis. 'Criámos um aparelho que custa um terço do preço dos convencionais, mas com tecnologia comparável', orgulha-se Miguel Santos, fundador de uma startup de Coimbra. O segredo? Produção local e venda direta ao consumidor, eliminando intermediários.
Nas zonas rurais do Alentejo, onde o silêncio é rei, a perda auditiva assume contornos diferentes. 'Aqui, não é o ruído que prejudica - é o isolamento', conta o médico de família Dr. António Guerra. 'Muitos idosos vivem sozinhos, e quando deixam de ouvir o telefone ou a campainha, ficam completamente desconectados.' Projetos comunitários estão a levar testes auditivos gratuitos a estas populações, muitas vezes pela primeira vez na vida.
A legislação portuguesa sobre proteção auditiva no trabalho é das mais avançadas da Europa, mas a fiscalização falha. Em fábricas do Vale do Ave, operários ainda trabalham sem proteção adequada, arriscando a audição por turnos de 8 horas. 'Reclamámos vezes sem conta', diz um trabalhador que prefere não se identificar. 'Dizem que os protetores são caros, mas quanto custa a nossa qualidade de vida?'
O futuro da audição em Portugal passa pela prevenção, tecnologia e, acima de tudo, pela quebra de estigmas. 'Usar aparelho auditivo ainda é visto como sinal de velhice', lamenta Maria, enquanto arruma o seu discreto dispositivo. 'Mas eu digo que é sinal de inteligência - prefiro ouvir o mundo do que viver no silêncio.' Num país onde a conversa é tradição, recuperar a capacidade de participar plenamente nesse ritual coletivo é mais do que uma questão de saúde - é uma questão de humanidade.
O silêncio que fala: histórias por trás da perda auditiva em Portugal