O som do silêncio: como a perda auditiva está a moldar as nossas relações e a nossa saúde mental

O som do silêncio: como a perda auditiva está a moldar as nossas relações e a nossa saúde mental
Há um som que está a desaparecer das nossas vidas, e poucos se apercebem da sua ausência. É o sussurro das folhas ao vento, o tilintar distante de chaves no bolso, o murmúrio de uma conversa íntima no canto de uma sala. A perda auditiva não chega com estrondo - chega com silêncio, instalando-se gradualmente como a névoa que cobre uma paisagem familiar, tornando-a estranha e distante.

Enquanto percorro os corredores da Clínica de Audiologia do Porto, encontro Manuel, de 68 anos, que me confessa: "Pensei que a minha mulher estava a ficar com a voz mais baixa. Culpava-a por sussurrar, até perceber que era eu que já não ouvia o mundo como antes." Esta é uma história comum, repetida em consultórios por todo o país. A negação é o primeiro sintoma, mais persistente que o zumbido nos ouvidos.

A ciência revela-nos dados alarmantes: em Portugal, estima-se que mais de 900 mil pessoas sofram de perda auditiva significativa. Destas, apenas 30% utilizam aparelhos auditivos. Os outros 70% navegam num mundo cada vez mais silencioso, enfrentando consequências que vão muito além da dificuldade em ouvir.

O que poucos compreendem é que os ouvidos são muito mais do que órgãos de audição - são pontes emocionais. Um estudo recente da Universidade de Coimbra demonstrou que pessoas com perda auditiva não tratada têm três vezes mais probabilidade de desenvolver depressão. O isolamento social não é uma escolha - é uma consequência inevitável quando as conversas se tornam labirintos sem saída.

Maria João, psicóloga especializada em reabilitação auditiva, explica-me: "O cérebro humano é uma máquina de fazer sentido. Quando deixamos de receber informação auditiva clara, ele entra em sobrecarga constante. O cansaço mental torna-se crónico, a irritabilidade instala-se, e as relações pessoais começam a definhar."

Nas famílias portuguesas, o tema permanece tabu. "É mais fácil admitir problemas de visão do que de audição", observa o Dr. António Silva, otorrinolaringologista com 25 anos de experiência. "A sociedade associa a surdez à velhice e à incapacidade, quando na realidade afeta pessoas de todas as idades."

Os jovens não estão imunes. A exposição a volumes elevados através de auscultadores transformou-se numa epidemia silenciosa. Nos concertos, nas academias, nos transportes públicos - os ouvidos da geração millennial estão a ser submetidos a níveis sonoros que os especialistas classificam como "agressão acústica continuada".

A tecnologia, porém, traz esperança. Os modernos aparelhos auditivos são maravilhas da microengenharia - discretos, inteligentes, capazes de se conectarem ao telemóvel e de filtrar o ruído de fundo automaticamente. "Já não são aqueles aparelhos grandes que os nossos avós usavam", garante-me Sofia Ribeiro, técnica de audiologia. "Hoje são praticamente invisíveis e adaptam-se ao ambiente em tempo real."

Mas o custo continua a ser uma barreira. Em Portugal, um par de aparelhos auditivos de gama média pode custar entre 1500 e 3000 euros - um valor proibitivo para muitas famílias. O Serviço Nacional de Saúde cobre parte das despesas, mas as listas de espera são longas e a oferta limitada.

Enquanto a sociedade debate estes aspectos práticos, há uma dimensão humana que permanece ignorada: a perda auditiva altera a nossa identidade. Pedro, um músico de 45 anos que começou a perder audição precocemente, desabafa: "Deixei de me reconhecer. A música era a minha linguagem, e de repente as notas começaram a faltar. Foi como perder uma parte da minha alma."

A solução passa pela prevenção e pela quebra de estigmas. Campanhas de sensibilização nas escolas, rastreios auditivos regulares nos centros de saúde, e uma discussão aberta sobre o tema podem fazer a diferença. "Precisamos de normalizar os cuidados auditivos como normalizamos os cuidados dentários", defende a Dra. Carla Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Audiologistas.

O futuro reserva avanços promissores. Investigadores portugueses estão a desenvolver soluções baseadas em inteligência artificial que prometem revolucionar a reabilitação auditiva. "Estamos a criar sistemas que não apenas amplificam o som, mas que aprendem com o utilizador e se adaptam às suas necessidades específicas", revela o Engenheiro Miguel Santos, do Instituto de Engenharia Biomédica.

Enquanto termino esta reportagem, lembro-me das palavras de Manuel, o primeiro homem que entrevistei: "Quando coloquei os aparelhos pela primeira vez, ouvi o cantar dos pássaros que já não ouvia há anos. Chorei. Não sabia que me faltava tanta beleza." Talvez a maior lição seja esta: o som mais importante não é o que perdemos, mas o que podemos recuperar quando temos a coragem de enfrentar o silêncio.

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