O som do silêncio: como a perda auditiva está a mudar a forma como vivemos em Portugal

O som do silêncio: como a perda auditiva está a mudar a forma como vivemos em Portugal
O barulho do trânsito na Avenida da Liberdade, o riso das crianças no parque, o sussurro de um segredo entre amigos - estes são os sons que definem a nossa existência. Mas para mais de 300 mil portugueses, estes sons estão a desaparecer gradualmente, substituídos por um silêncio cada vez mais profundo que está a redefinir não apenas a sua audição, mas a sua própria forma de estar no mundo.

A perda auditiva não é apenas uma questão médica - é uma crise social silenciosa que está a transformar relações familiares, carreiras profissionais e até a nossa compreensão do que significa estar conectado. Enquanto percorro consultórios de audiologia por todo o país, encontro histórias que revelam um padrão perturbador: pessoas que deixam de ir a jantares de família porque não conseguem acompanhar as conversas, profissionais brilhantes que vêem as suas carreiras estagnar porque não ouvem as nuances das reuniões, casais que dormem em quartos separados porque o ronco do parceiro se tornou insuportável.

O que mais me impressiona nesta investigação é o tempo que as pessoas esperam antes de procurar ajuda. Em média, os portugueses demoram sete anos entre perceber que têm um problema auditivo e procurar tratamento. Sete anos de isolamento crescente, de mal-entendidos acumulados, de oportunidades perdidas. Durante este período, o cérebro adapta-se à falta de estímulos sonoros, tornando a reabilitação mais difícil quando finalmente decidem agir.

A tecnologia moderna trouxe avanços extraordinários que poderiam revolucionar esta situação, mas a realidade é que apenas 30% das pessoas que precisam de aparelhos auditivos em Portugal os utilizam. Os motivos são complexos: desde o custo - que pode chegar aos 3000 euros por aparelho - até ao estigma social que ainda persiste em associar estes dispositivos à velhice e à incapacidade. Enquanto observo os novos modelos quase invisíveis que se escondem discretamente no canal auditivo, pergunto-me porque continuamos a ver estes aparelhos como símbolos de limitação em vez de ferramentas de libertação.

A pandemia veio agravar dramaticamente esta situação. O uso generalizado de máscaras tornou impossível a leitura labial, uma técnica que muitas pessoas com deficiência auditiva utilizavam sem sequer ter consciência disso. As videochamadas, com o seu áudio frequentemente comprometido, transformaram reuniões de trabalho em exercícios de adivinhação. E o distanciamento social cortou os laços que mantinham muitas pessoas conectadas ao mundo exterior.

Mas há esperança no horizonte. Os centros de saúde começam a integrar rastreios auditivos nos check-ups de rotina, as empresas de tecnologia desenvolvem aplicações que transformam smartphones em amplificadores pessoais, e uma nova geração de aparelhos conecta-se diretamente aos nossos dispositivos digitais, funcionando como auriculares sofisticados que ninguém suspeitaria serem ajudas auditivas.

O mais fascinante talvez seja descobrir como a perda auditiva está a forçar-nos a repensar a forma como comunicamos. Em famílias onde um membro tem dificuldades auditivas, aprendem a falar mais devagar, a articular melhor as palavras, a garantir que estão virados para a pessoa quando falam. Estas não são apenas adaptações técnicas - são lições de empatia que beneficiam todos os relacionamentos.

Nas escolas, professores começam a compreender que uma criança que parece desatenta pode simplesmente não estar a ouvir correctamente. Nos locais de trabalho, empregadores descobrem que pequenos ajustes - como salas com melhor acústica ou a utilização de sistemas de microfone em reuniões - podem fazer uma diferença enorme na produtividade e no bem-estar de toda a equipa.

O verdadeiro desafio, contudo, não é tecnológico nem médico - é cultural. Precisamos de normalizar a perda auditiva como normalizamos a necessidade de óculos. Precisamos de celebrar a diversidade de formas de experienciar o mundo, reconhecendo que cada pessoa ouve à sua maneira. E precisamos, acima de tudo, de aprender a valorizar o silêncio não como ausência, mas como um espaço de possibilidade.

Enquanto termino esta reportagem, lembro-me das palavras de uma senhora de 72 anos que conheci numa clínica do Porto: 'Quando coloquei o aparelho pela primeira vez, chorei. Não por ouvir melhor, mas por perceber quanto tinha estado a perder.' O seu testemunho ecoa na minha mente como um lembrete poderoso: numa sociedade cada vez mais barulhenta, talvez a maior revolução seja aprender a ouvir - uns aos outros, ao mundo, e aos sussurros que definem a nossa humanidade partilhada.

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