O som do silêncio: como a perda auditiva silenciosa está a moldar as nossas relações

O som do silêncio: como a perda auditiva silenciosa está a moldar as nossas relações
Há um fenómeno que se espalha pelos cafés, escritórios e salas de estar portuguesas sem fazer barulho. É a epidemia silenciosa da perda auditiva, que afecta mais de um milhão de portugueses, muitos sem sequer saberem. Enquanto nos preocupamos com a poluição sonora das cidades, ignoramos o ruído interno que nos vai roubando, gota a gota, a capacidade de ouvir o mundo à nossa volta.

A ironia é cruel: vivemos na era da comunicação, mas cada vez mais pessoas se sentem isoladas nas suas próprias bolhas acústicas. Os primeiros sinais são subtis - pedir para repetir frases, aumentar o volume da televisão, evitar conversas em ambientes ruidosos. São comportamentos que atribuímos ao cansaço ou distracção, nunca ao início de uma condição médica que, se não tratada, pode levar ao isolamento social e até à depressão.

O que poucos sabem é que a perda auditiva não afecta apenas os idosos. Um estudo recente da Universidade do Porto revelou que 20% dos jovens entre os 18 e 35 anos já apresentam sinais de perda auditiva precoce, directamente ligada ao uso excessivo de auriculares e à exposição a ambientes ruidosos. São uma geração que cresceu com smartphones nos bolsos e música nos ouvidos, agora a pagar o preço da conectividade constante.

Nas empresas portuguesas, o impacto económico é assustador. Funcionários com dificuldades auditivas não diagnosticadas cometem mais erros, têm menor produtividade e maior taxa de absentismo. As reuniões tornam-se campos minados de mal-entendidos, os briefings transformam-se em exercícios de adivinhação. E o pior: muitos preferem esconder o problema por vergonha, receando ser vistos como incompetentes ou velhos.

A tecnologia moderna oferece soluções que parecem saídas de ficção científica. Os aparelhos auditivos de última geração são praticamente invisíveis, conectam-se aos smartphones e podem ser ajustados remotamente por audiologistas. Alguns modelos conseguem até traduzir línguas em tempo real ou focar-se em vozes específicas num ambiente barulhento. Mas o estigma persiste, alimentado por imagens antiquadas de dispositivos grandes e pouco discretos.

O custo continua a ser uma barreira significativa em Portugal, onde os aparelhos auditivos de qualidade podem custar mais do que um ordenado mínimo. Embora o SNS ofereça algum apoio, as listas de espera são longas e as opções limitadas. Muitos portugueses acabam por adiar o tratamento até que a situação se torne insustentável, perdendo anos de qualidade de vida que nunca poderão recuperar.

A prevenção é a arma mais poderosa que temos. Educar as crianças sobre os perigos do volume excessivo, criar ambientes de trabalho com melhor acústica, fazer exames auditivos regulares - estas são medidas simples que podem fazer a diferença entre envelhecer com todos os sentidos intactos ou viver num mundo cada vez mais silencioso.

As famílias desempenham um papel crucial na detecção precoce. São os filhos que notam que os pais estão a aumentar demasiado o volume da televisão, os cônjuges que percebem que certas frases se perdem no ar. O diálogo aberto sobre saúde auditiva deveria ser tão normal como falar sobre visão ou saúde dental, mas continua a ser um tabu que precisa de ser quebrado.

Os espaços públicos em Portugal estão a começar a adaptar-se. Alguns teatros e cinemas já oferecem sistemas de amplificação sonora, restaurantes investem em acústica que permite conversas civilizadas, e até algumas igrejas instalaram equipamentos para ajudar os fiéis com dificuldades auditivas. São passos pequenos, mas importantes, na construção de uma sociedade mais inclusiva.

O futuro da saúde auditiva em Portugal depende de uma mudança cultural. Precisamos de normalizar os exames auditivos, desmistificar os aparelhos auditivos e reconhecer que ouvir bem não é um luxo, mas uma necessidade fundamental para uma vida plena. O som do silêncio pode ser poético na música, mas na vida real, é um alerta que não podemos ignorar.

Enquanto sociedade, estamos num ponto de viragem. Podemos continuar a tratar a perda auditiva como um problema menor, ou podemos reconhecê-la como a questão de saúde pública que realmente é. A escolha que fizermos hoje irá determinar se as próximas gerações de portugueses viverão num mundo de sons ricos e vibrantes, ou num universo progressivamente mais silencioso e solitário.

Subscreva gratuitamente

Terá acesso a conteúdo exclusivo, como descontos e promoções especiais do conteúdo que escolher:

Tags

  • saúde auditiva
  • perda auditiva
  • aparelhos auditivos
  • prevenção
  • bem-estar