Há um som que poucos ouvem, mas que milhões sentem: o som do isolamento. Em Portugal, estima-se que mais de 300 mil pessoas sofrem de perda auditiva significativa, um número que cresce silenciosamente a cada ano. Não se trata apenas de não ouvir bem - trata-se de perder conexões, de ver o mundo encolher à medida que os sons desaparecem.
Maria, uma professora reformada de 68 anos, lembra-se do dia em que percebeu que algo estava errado. "Pensei que as pessoas estavam a sussurrar", conta, enquanto ajusta discretamente o seu aparelho auditivo. "Na verdade, era eu que já não conseguia acompanhar as conversas. Comecei a evitar jantares em família, a dizer que estava cansada. A solidão chegou sem fazer barulho."
A história de Maria não é única. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, Portugal está entre os países europeus com maior prevalência de problemas auditivos na população acima dos 65 anos. Mas o que mais preocupa os especialistas é o aumento de casos entre jovens, vítimas da exposição prolongada a ruídos intensos e do uso inadequado de auriculares.
O Dr. António Silva, otorrinolaringologista com mais de trinta anos de experiência, explica que a perda auditiva é como um ladrão que entra pela porta dos fundos. "Vem gradualmente, quase impercetivelmente. As pessoas adaptam-se, pedem para repetir, aumentam o volume da televisão. Só quando a comunicação se torna um esforço é que procuram ajuda."
A tecnologia, porém, trouxe uma revolução silenciosa. Os aparelhos auditivos modernos são maravilhas da engenharia - dispositivos tão pequenos que quase desaparecem no canal auditivo, capazes de filtrar ruído de fundo, conectar-se a smartphones e até traduzir idiomas em tempo real. "Há dez anos, os aparelhos eram como megafones", compara o engenheiro Pedro Martins, que desenvolve tecnologia auditiva. "Hoje são computadores vestíveis que aprendem com o ambiente do utilizador."
Mas a tecnologia tem um preço, e aí reside outro problema: o custo. Em Portugal, um par de aparelhos auditivos de última geração pode custar entre 2000 a 5000 euros, um valor proibitivo para muitas famílias. O Serviço Nacional de Saúde cobre parte dos custos, mas as listas de espera são longas e as comparticipações insuficientes para quem precisa de soluções mais avançadas.
Esta realidade criou um mercado paralelo preocupante. "Há quem compre aparelhos online, sem acompanhamento médico, o que pode agravar os problemas", alerta Carla Mendes, presidente de uma associação de apoio a pessoas com deficiência auditiva. "A adaptação de um aparelho auditivo não é como comprar uns óculos. Requer avaliação, calibração e acompanhamento."
O impacto social da perda auditiva vai muito além do indivíduo. Estudos mostram que quem sofre de problemas auditivos não tratados tem maior probabilidade de desenvolver depressão, ansiedade e até demência. O cérebro, privado de estímulos sonoros, começa a atrofiar-se, criando um ciclo vicioso de isolamento e declínio cognitivo.
No local de trabalho, o estigma persiste. "Muitos escondem os aparelhos por medo de discriminação", conta Ricardo, um gestor de 45 anos que só começou a usar aparelhos há dois anos. "Passei uma década a fazer reuniões onde entendia metade do que era dito. Inventava desculpas, pedia emails. O alívio quando finalmente procurei ajuda foi indescritível."
As soluções, porém, estão a evoluir rapidamente. Além dos aparelhos tradicionais, surgiram implantes cocleares para casos mais severos, aplicações que transformam smartphones em auxiliares auditivos e até inteligência artificial que pode transcrever conversas em tempo real. "Estamos na fronteira de uma nova era", entusiasma-se a investigadora Sofia Ramos, que estuda interfaces cérebro-computador. "Daqui a dez anos, poderemos ter dispositivos que não apenas amplificam o som, mas que o interpretam e selecionam de forma inteligente."
Enquanto isso, organizações como a Audio e Saúde e a Saúde Auditiva trabalham para educar a população sobre a importância dos check-ups regulares. "A audição deveria ser verificada com a mesma regularidade que a visão ou a tensão arterial", defende Miguel Costa, técnico de audiologia. "Detetar precocemente pode fazer toda a diferença."
O caminho, porém, ainda é longo. Falta investimento em investigação, necessidade de maior comparticipação estatal e, sobretudo, quebra de preconceitos. "Usar aparelho auditivo não é sinal de velhice ou incapacidade", insiste Maria, que hoje participa ativamente em grupos de apoio. "É sinal de que valorizamos a nossa qualidade de vida e as nossas relações."
No final, a mensagem é clara: ouvir bem é viver bem. Num mundo cada vez mais barulhento, preservar a audição torna-se não apenas uma questão de saúde, mas de humanidade. Porque cada conversa perdida é uma história que deixa de ser partilhada, cada riso que não se ouve é uma alegria que não se vive plenamente. O som do silêncio pode ser poético na música, mas na vida real, é um luxo que ninguém pode pagar.
O som do silêncio: quando a perda auditiva muda vidas em Portugal
