O som do silêncio: quando a perda auditiva se torna uma epidemia silenciosa em Portugal

O som do silêncio: quando a perda auditiva se torna uma epidemia silenciosa em Portugal
Num café de Lisboa, três amigos na casa dos cinquenta conversam animadamente. Dois deles riem de uma piada que o terceiro não ouviu. Ele sorri por educação, fingindo ter captado a graça, enquanto o mundo à sua volta se transforma num filme mudo com legendas que falham. Esta cena repete-se diariamente em milhares de estabelecimentos por todo o país, num fenómeno que especialistas começam a classificar como uma epidemia silenciosa.

A perda auditiva não escolhe idade, género ou profissão. O otorrinolaringologista Miguel Santos, que atende no Hospital de Santa Maria, confirma: "Atendo cada vez mais jovens, alguns ainda na casa dos trinta, com problemas que antes só víamos em pessoas com o dobro da idade. Os fones com volume excessivo, os ambientes ruidosos das cidades e o stresse contínuo estão a criar uma geração que vai envelhecer mais cedo do ponto de vista auditivo."

O que mais preocupa os especialistas é a normalização da perda. "As pessoas demoram em média sete anos desde os primeiros sintomas até procurarem ajuda", revela Ana Lopes, audiologista com clínica no Porto. "Nesse período, o cérebro adapta-se à deficiência, reorganizando-se de forma menos eficiente. Quando finalmente colocam um aparelho, o cérebro já 'esqueceu' como processar certos sons corretamente."

A tecnologia trouxe avanços extraordinários. Os modernos aparelhos auditivos são mini-computadores que se adaptam automaticamente a diferentes ambientes, filtram ruídos de fundo e até se conectam a smartphones. "Temos pacientes que conseguem ouvir o canto dos pássaros pela primeira vez em anos", conta Carlos Mendes, técnico de próteses auditivas em Coimbra. "Mas o verdadeiro milagre acontece quando recuperam a capacidade de participar plenamente nas conversas familiares."

O custo continua a ser uma barreira significativa. Um par de aparelhos de gama média pode custar entre 2000 e 4000 euros, valor que o Sistema Nacional de Saúde apenas comparticipa parcialmente para casos específicos. "Muitos reformados adiam a solução por anos, isolando-se progressivamente do mundo", lamenta Sofia Rodrigues, da Associação Portuguesa de Surdos. "É uma forma de pobreza sensorial que afeta profundamente a qualidade de vida."

A prevenção começa na infância. Pediatras alertam para o perigo dos brinquedos sonoros excessivamente ruidosos e dos fones em volume máximo. "Os pais preocupam-se com os olhos das crianças, mas esquecem-se dos ouvidos", nota Pedro Costa, especialista em saúde infantil. "O dano auditivo é cumulativo e irreversível. Uma exposição prolongada a 85 decibéis - volume comum em muitos fones - pode causar perda permanente."

No local de trabalho, a legislação portuguesa estabelece limites de exposição ao ruído, mas a fiscalização é insuficiente. Operários da construção civil, professores, músicos e funcionários de bares estão particularmente vulneráveis. "Trabalhei dez anos como empregada de mesa e hoje tenho zumbidos constantes", partilha Marta, 42 anos. "Ninguém nos avisou para usar proteção. Achávamos que o barulho era parte normal do trabalho."

A revolução chegou também ao diagnóstico. Aplicações móveis permitem testes auditivos preliminares em casa, embora os especialistas alertem para a necessidade de confirmação profissional. "É como medir a tensão arterial na farmácia - útil para screening, mas insuficiente para diagnóstico", compara o Dr. Santos.

O estigma persiste, alimentado pela ideia antiquada de que aparelhos auditivos são apenas para idosos. "Vejo executivos de topo que preferem não ouvir bem a usar um dispositivo discreto", revela a Dra. Lopes. "É uma vaidade perigosa que compromete o seu desempenho profissional e relações pessoais."

O futuro promete avanços fascinantes. Investigadores da Universidade do Minho trabalham em aparelhos que não apenas amplificam sons, mas os interpretam. "Imagine um dispositivo que traduz automaticamente línguas estrangeiras ou que identifica e nomeia sons ambientais para pessoas com perda profunda", entusiasma-se a investigadora Helena Marques.

Enquanto isso, nas ruas portuguesas, a epidemia silenciosa continua a espalhar-se. O som do trânsito, das conversas, da música - o tecido sonoro da vida - vai-se desvanecendo para milhares de portugueses. A solução existe, mas exige quebrar tabus, investir em prevenção e reconhecer que ouvir bem não é um luxo, mas uma dimensão fundamental do bem-estar.

No mesmo café de Lisboa, o terceiro amigo decidiu finalmente agir. Após avaliação, adaptou aparelhos quase invisíveis. "É como ter limpo um vidro embaciado", descreve. "Recuperei não apenas os sons, mas as nuances, as emoções nas vozes, a riqueza do mundo. Percebi que não estava apenas a perder audição - estava a perder vida."

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