Há uma epidemia silenciosa a espalhar-se por Portugal, e poucos estão a prestar atenção. Não porque não queiram, mas porque literalmente não conseguem ouvir os sinais de alerta. A perda auditiva afeta mais de 30% dos portugueses com mais de 50 anos, segundo dados da Direção-Geral da Saúde, mas apenas uma fração mínima procura ajuda. O estigma social, combinado com ideias antiquadas sobre como são os aparelhos auditivos, mantém milhões de pessoas presas num mundo cada vez mais silencioso.
Enquanto percorro os corredores de uma clínica auditiva em Lisboa, observo idosos que hesitam antes de entrar, como se estivessem a cometer um ato de vergonha. "Ainda pensam que usar um aparelho é sinal de velhice ou incapacidade", explica-me o Dr. Miguel Santos, audiologista com 25 anos de experiência. "O que não percebem é que a tecnologia atual transformou completamente esta realidade."
Os aparelhos modernos são maravilhas da microtecnologia. Dispositivos do tamanho de uma ervilha que se escondem completamente no canal auditivo, capazes de se conectar ao telemóvel, transmitir música em alta definição e até traduzir idiomas em tempo real. "Temos pacientes que usam os aparelhos para ouvir podcasts durante as caminhadas ou para ter conversas telefónicas sem precisar de colocar o telemóvel no ouvido", revela o especialista.
A verdadeira revolução, porém, está a acontecer nos laboratórios de investigação. Cientistas portugueses estão na vanguarda do desenvolvimento de aparelhos com inteligência artificial que aprendem com o ambiente do utilizador. "Imagine um dispositivo que reconhece que está num restaurante barulhento e automaticamente amplifica as vozes à sua mesa enquanto reduz o ruído de fundo", descreve a investigadora Carla Mendes, do Instituto de Bioengenharia do Porto.
Mas a tecnologia de ponta esbarra numa barreira cultural profundamente enraizada. Em conversas com grupos de seniores por todo o país, encontro uma resistência quase unânime. "Os meus netos dizem que devia usar, mas não quero parecer velha", confessa-me Dona Maria, de 72 anos, enquanto ajusta os óculos. O paradoxo é evidente: a mesma geração que adotou smartphones e redes sociais com entusiasmo rejeita uma tecnologia que poderia melhorar dramaticamente a sua qualidade de vida.
As consequências vão muito além de não ouvir a televisão com volume mais alto. Estudos recentes mostram uma ligação direta entre perda auditiva não tratada e declínio cognitivo. "O cérebro precisa de estímulos auditivos para se manter ativo", explica a neurologista Isabel Ramos. "Quando privamos o cérebro desses sons, aceleramos processos de demência e Alzheimer."
O sistema nacional de saúde oferece algum apoio, mas as listas de espera podem chegar a dois anos. Enquanto isso, o setor privado floresce com soluções cada vez mais acessíveis. "Há cinco anos, um bom aparelho custava mais de 2.000 euros. Hoje encontramos tecnologia similar por metade do preço", nota o comerciante Rui Carvalho, cuja loja no Porto viu as vendas triplicarem nos últimos três anos.
A batalha mais difícil, porém, não é económica nem tecnológica - é psicológica. Psicólogos especializados em reabilitação auditiva desenvolvem técnicas para ajudar os pacientes a superar o choque inicial de voltar a ouvir sons que há muito tinham esquecido. "Muitos choram quando ouvem o cantar dos pássaros pela primeira vez em anos", conta a psicóloga Sofia Almeida. "É emocionante testemunhar essas redescobertas."
O futuro promete ainda mais transformações. Investigadores trabalham em aparelhos que não apenas corrigem a audição, mas a melhoram além das capacidades humanas naturais. "Estamos a desenvolver tecnologia que permitirá ouvir frequências normalmente inacessíveis ao ouvido humano", antevê o engenheiro biomédico Tiago Silva. "Será como dar visão noturna a alguém que apenas vê durante o dia."
Enquanto termino esta reportagem, recebo uma mensagem de Dona Maria, a senhora que há duas semanas me confessara a sua relutância. "Hoje experimentei um aparelho moderno", escreve. "Ouvi o barulho das folhas das árvores ao vento. Não me lembrava de que esse som existia." Às vezes, a tecnologia mais avançada não serve para criar algo novo, mas para nos devolver o que sempre tivemos e, sem dar por isso, fomos perdendo.
O som esquecido: a revolução silenciosa dos aparelhos auditivos em Portugal
