Num café de Lisboa, um homem de sessenta anos inclina-se para a frente, o rosto contraído num esforço visível. As vozes à sua volta fundem-se num zumbido indistinto, como se estivesse submerso. Esta cena repete-se diariamente em milhares de portugueses que, silenciosamente, perdem pedaços do mundo através de um sentido que muitos consideram garantido: a audição.
A perda auditiva não chega de repente, como um interruptor que se desliga. Chega como um ladrão furtivo, roubando primeiro os sons mais subtis - o chilrear dos pássaros ao amanhecer, o sussurro das folhas ao vento. Só depois ataca as conversas, transformando diálogos em exercícios de decifração. Estudos recentes mostram que os portugueses demoram em média sete anos desde os primeiros sinais até procurarem ajuda. Sete anos de isolamento progressivo, de mal-entendidos acumulados, de relações que se desgastam.
O que poucos compreendem é que os ouvidos não são meros recetores passivos. São órgãos dinâmicos que processam sons com uma precisão extraordinária, capazes de distinguir entre milhares de frequências diferentes. Quando esta maquinaria começa a falhar, o cérebro é forçado a trabalhar horas extras, tentando preencher as lacunas. Esta sobrecarga neural explica a fadiga intensa que muitos sentem após situações sociais aparentemente simples.
Nas últimas décadas, assistimos a uma mudança silenciosa no perfil da perda auditiva. Se antes era predominantemente associada ao envelhecimento, hoje atinge cada vez mais jovens. Os fones que acompanham os millennials e a geração Z tornaram-se uma espada de dois gumes - proporcionam acesso ilimitado à música e ao entretenimento, mas expõem os ouvidos a níveis sonoros perigosos durante horas a fio.
A tecnologia moderna oferece soluções que parecem saídas de ficção científica. Os aparelhos auditivos contemporâneos são maravilhas da microengenharia, capazes de amplificar seletivamente a fala humana enquanto reduzem o ruído de fundo. Muitos conectam-se diretamente a smartphones, permitindo ajustes personalizados para cada ambiente. No entanto, o estigma persiste - a ideia de que estes dispositivos são símbolos de velhice ou incapacidade.
Esta perceção está desatualizada e é profundamente prejudicial. Tal como os óculos deixaram de ser vistos como acessórios médicos para se tornarem elementos de estilo, os aparelhos auditivos estão a seguir o mesmo caminho. Marcas inovadoras estão a criar designs elegantes, discretos e até fashion, transformando o que era um tabu num acessório tecnológico.
A prevenção continua a ser a nossa arma mais poderosa. Medidas simples podem fazer uma diferença abismal: reduzir o volume dos dispositivos pessoais, usar proteção auditiva em ambientes ruidosos, fazer pausas regulares da exposição sonora. Os exames auditivos regulares deveriam ser tão comuns como as consultas dentárias - afinal, a audição é igualmente preciosa.
O impacto social da perda auditiva não tratada vai muito além da dificuldade em ouvir. Está ligada a maiores taxas de depressão, ansiedade e isolamento social. Em idosos, está correlacionada com declínio cognitivo acelerado. O cérebro, privado de estimulação auditiva adequada, começa a atrofiar-se mais rapidamente.
Em Portugal, o acesso aos cuidados auditivos melhorou significativamente, mas ainda existem barreiras. O custo dos aparelhos, a falta de cobertura total por parte do SNS, e a escassez de especialistas em algumas regiões mantêm muitos portugueses afastados dos tratamentos de que necessitam.
A boa notícia é que nunca houve melhor altura para cuidar da saúde auditiva. A investigação avança a ritmo acelerado, com novas terapias genéticas e regenerativas no horizonte. Enquanto isso, os dispositivos atuais oferecem qualidade sonora que rivaliza com a audição natural em muitos casos.
O som é a trilha sonora das nossas vidas - o riso das crianças, a música que nos marca, as palavras dos que amamos. Perder esta conexão é perder parte da nossa humanidade. Cuidar da nossa audição não é um ato de vaidade ou um luxo - é uma necessidade fundamental para mantermos o nosso lugar no mundo sonoro que nos rodeia.
A próxima vez que estiver numa conversa, num concerto, ou simplesmente a ouvir a chuva cair, lembre-se: cada som é um presente. E como todos os presentes preciosos, merece ser protegido.
O som esquecido: como a saúde auditiva molda nossa conexão com o mundo