O som esquecido: como recuperar a audição sem perder a identidade

O som esquecido: como recuperar a audição sem perder a identidade
A sala de espera do consultório de audiologia tem um silêncio peculiar. Não é o silêncio vazio das estações de comboio à noite, mas um silêncio carregado de histórias não contadas. Maria, 68 anos, espera pelo seu terceiro aparelho auditivo em dez anos. 'Cada vez que venho aqui', diz-me, baixando a voz como se partilhasse um segredo, 'sinto que estou a perder um pedaço de quem era.'

Esta não é apenas a história de Maria. É a história de milhares de portugueses que, ano após ano, enfrentam o declínio auditivo como se fosse uma sentença de isolamento. A perda auditiva em Portugal afecta cerca de 30% da população acima dos 65 anos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde. Mas os números, frios e impessoais, não capturam a dimensão humana deste problema.

O que significa, realmente, perder a capacidade de ouvir o chilrear dos pássaros na manhã de domingo? Ou o riso dos netos ao telefone? A ciência mostra-nos que a audição não é apenas um sentido - é a cola que mantém as nossas relações sociais. Um estudo recente da Universidade do Porto revela que pessoas com perda auditiva não tratada têm três vezes mais probabilidade de desenvolver depressão.

Mas há esperança no horizonte. A tecnologia dos aparelhos auditivos evoluiu mais na última década do que nos cinquenta anos anteriores. Os novos dispositivos não são apenas amplificadores de som - são computadores minúsculos que aprendem com o nosso ambiente. 'Já não estamos a vender aparelhos', explica-me o Dr. Silva, audiologista com vinte anos de experiência, 'estamos a vender qualidade de vida.'

A revolução chegou discretamente. Os aparelhos modernos conectam-se directamente aos smartphones, permitindo ajustes personalizados através de aplicações. Podem filtrar o ruído de fundo em restaurantes barulhentos, focando-se nas vozes das pessoas à nossa mesa. Alguns modelos até traduzem línguas em tempo real. 'É como ter um assistente pessoal dentro do ouvido', brinca Carlos, 45 anos, que adquiriu o seu primeiro aparelho há seis meses.

No entanto, o estigma persiste. Muitos ainda associam os aparelhos auditivos à velhice, à decadência. 'As pessoas aceitam óculos sem problemas', observa a psicóloga Sofia Martins, especialista em reabilitação auditiva, 'mas os aparelhos auditivos carregam um peso emocional diferente. É como se estivessem a admitir uma deficiência.'

Esta percepção está a mudar, lentamente. As celebridades começam a falar abertamente sobre as suas experiências. Os designs tornaram-se mais discretos, quase invisíveis. Alguns modelos até se parecem com auriculares de alta tecnologia, tornando-os quase 'cool' entre os mais jovens.

O caminho para a adaptação bem-sucedida, porém, não é linear. Requer paciência e, sobretudo, acompanhamento profissional. 'Muitas pessoas compram aparelhos online e ficam desiludidas', alerta o Dr. Silva. 'Cada ouvido é único, cada perda auditiva é diferente. Não existem soluções universais.'

A reabilitação auditiva vai além do dispositivo em si. Envolve aprender a ouvir novamente, a interpretar sons que há muito se tinham tornado distorcidos ou desapareceram completamente. 'Os primeiros dias são estranhos', confidencia Ana, 72 anos. 'O som da água a correr na torneira parecia uma cascata. Mas gradualmente, o cérebro adapta-se.'

O custo continua a ser uma barreira significativa. Um par de aparelhos auditivos de qualidade pode custar entre 1500 e 4000 euros, um valor proibitivo para muitas famílias portuguesas. O Serviço Nacional de Saúde cobre parte destes custos em casos específicos, mas as listas de espera são longas e os critérios, restritivos.

Enquanto isso, surgem alternativas interessantes. Algumas seguradoras de saúde começam a incluir cobertura para aparelhos auditivos nos seus planos. Empresas desenvolvem modelos de subscrição, semelhantes aos telemóveis, que permitem pagamentos mensais mais acessíveis.

O futuro, porém, promete ainda mais. Pesquisas em nanotecnologia e inteligência artificial sugerem que dentro de uma década, poderemos ter implantes que não apenas restauram a audição, mas a melhoram. 'Imagine conseguir ouvir frequências que os humanos normalmente não ouvem', especula uma investigadora do Instituto de Bioengenharia. 'Ou ter memória auditiva - gravar e reproduzir sons importantes.'

Mas a tecnologia, por mais avançada que seja, não substitui o elemento humano. A verdadeira revolução na saúde auditiva acontece quando quebramos o silêncio sobre o assunto. Quando normalizamos a conversa sobre perda auditiva como normalizamos a conversa sobre visão.

Maria, no final da nossa conversa, mostra-me fotografias dos seus netos. 'O mais novo fez seis anos na semana passada', diz, com os olhos a brilhar. 'Consegui ouvir a canção dos parabéns perfeitamente. Não há preço que pague isso.'

Talvez o som mais importante que precisamos recuperar não seja o dos pássaros ou da música, mas o da conexão humana. E nesse aspecto, todos temos algo a ganhar quando aprendemos a ouvir - e a ser ouvidos - melhor.

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