Num café de Lisboa, enquanto o ruído da cidade invade o espaço, Maria, 68 anos, sorri enquanto sussurra ao ouvido do neto. Há dois anos, esse gesto seria impossível. 'Vivia num mundo de algodão', confessa, enquanto ajusta discretamente o aparelho auditivo. 'As conversas à mesa eram como filmes mudos, e o riso dos meus netos era apenas uma imagem.' A sua história não é única - em Portugal, estima-se que mais de 300 mil pessoas precisem de soluções auditivas, mas muitas resistem por anos, mergulhando progressivamente no isolamento.
O que leva alguém a adiar durante uma década a solução para um problema que afeta cada interação humana? A resposta está numa teia complexa de preconceitos, desinformação e medo. 'As pessoas associam aparelhos auditivos à velhice, à incapacidade', explica o Dr. Ricardo Silva, audiologista com 25 anos de experiência. 'Mas hoje em dia, os dispositivos são tão discretos que passam despercebidos. O verdadeiro sinal de envelhecimento é isolar-se do mundo.'
A tecnologia fez saltos impressionantes nos últimos cinco anos. Os modernos aparelhos não amplificam simplesmente o som - analisam o ambiente acústico em milésimos de segundo, suprimindo ruídos de fundo enquanto realçam a fala. Alguns conectam-se diretamente a smartphones, permitindo que o utilizador ajuste as definições discretamente ou transforme o dispositivo num auricular para chamadas. 'É como ter um assistente pessoal para os ouvidos', brinca Sofia, 42 anos, que utiliza aparelhos desde os 35 devido a uma condição genética.
Mas o caminho para a adaptação nem sempre é linear. António, 58 anos, descreve as primeiras semanas como 'uma overdose sensorial'. 'Depois de anos com perda auditiva, o cérebro desaprende a processar certos sons. Quando coloquei os aparelhos, o tilintar dos talheres era insuportável, e o barulho do trânsito parecia um concerto de metal.' A adaptação requer paciência e acompanhamento especializado - um processo que muitos abandonam prematuramente, voltando ao silêncio por falta de orientação adequada.
A saúde auditiva está intrinsecamente ligada ao bem-estar geral. Estudos recentes mostram correlações alarmantes entre perda auditiva não tratada e declínio cognitivo, depressão e até aumento do risco de quedas. 'O ouvido não é um órgão isolado', enfatiza a Dra. Carla Mendes, otorrinolaringologista. 'Quando privamos o cérebro de estímulos auditivos, ele começa a atrofiar-se, tal como um músculo não utilizado.'
O mercado português oferece hoje soluções para todas as necessidades e bolsos, desde modelos básicos a tecnologia de ponta. O Seguro Social de Saúde comparticipa parte do custo, e muitas seguradoras privadas incluem cobertura para aparelhos auditivos nos seus planos. Ainda assim, o investimento assusta muitos. 'Comparo sempre ao valor de recuperar uma conversa com um amigo, ou ouvir o mar pela primeira vez em anos', partilha o técnico de próteses João Pereira. 'Não há preço para isso.'
As histórias de transformação são as mais poderosas. Pedro, 71 anos, reformado da construção civil, descreve o momento em que ouviu os pássaros após oito anos: 'Pensei que tinha esquecido como soavam. Quando os ouvi outra vez, veio-me uma lágrima ao olho. Era como reencontrar um amigo de infância.' Para Leonor, 45 anos, a mudança foi profissional: 'Na minha empresa, evitavam-me nas reuniões porque eu pedia constantemente para repetirem. Agora, participo ativamente e até fui promovida.'
O maior obstáculo permanece cultural. Enquanto os óculos são vistos como acessórios de estilo, os aparelhos auditivos carregam um estigma secular. Mas essa perceção está a mudar, lentamente. Celebridades como o ator Robert Redford e a cantora Barbra Streisand falaram abertamente sobre o uso de dispositivos auditivos, normalizando a sua utilização. Em Portugal, campanhas de sensibilização começam a surgir, destacando que cuidar da audição é um ato de amor-próprio, não uma vergonha.
O futuro promete revoluções ainda maiores. Investigadores trabalham em aparelhos que se autoajustam através de inteligência artificial, aprendendo com as preferências do utilizador. Outros exploram estimulação elétrica para regenerar células ciliadas danificadas - potencialmente curando algumas formas de surdez. Enquanto isso, a prevenção ganha destaque: proteger os ouvidos em ambientes ruidosos e fazer check-ups regulares após os 50 anos podem preservar a audição por décadas.
No final, trata-se de reconectar pessoas às suas vidas. Como resume Maria, enquanto ouve o neto contar sobre o dia na escola: 'Recuperei não apenas os sons, mas as histórias, as piadas, a música das palavras. Voltei a fazer parte do coro da vida.' Num mundo cada vez mais barulhento, talvez a verdadeira revolução seja aprender a ouvir - e a ser ouvido - outra vez.
O som esquecido: histórias de quem recuperou a vida através da audição