O som esquecido: histórias de quem recuperou o mundo através da audição

O som esquecido: histórias de quem recuperou o mundo através da audição
Há um universo paralelo que muitos desconhecem: o mundo dos sons subtis que desaparecem gradualmente, sem que nos apercebamos. Não é apenas sobre volume, mas sobre texturas sonoras – o farfalhar das folhas no outono, o sussurro de um segredo, o tilintar das chaves na porta de casa. Em Portugal, estima-se que mais de 300 mil pessoas vivam com perda auditiva significativa, mas apenas um terço procura ajuda. Porquê? O estigma ainda pesa como uma pedra no bolso.

Maria, 68 anos, costureira reformada do Porto, guardou o seu segredo durante sete anos. 'Pensava que era normal, que toda a gente ouvia cada vez menos', confessa, enquanto ajusta discretamente o seu aparelho auditivo. 'O pior não era não ouvir as conversas, era a solidão que vinha com isso. Deixei de ir ao café, evitei os netos... Tornava-me invisível.' A sua história ecoa em milhares de lares portugueses, onde a perda auditiva é muitas vezes confundida com distração ou, pior, com declínio cognitivo.

A revolução silenciosa dos aparelhos auditivos modernos pouco tem a ver com os dispositivos volumosos que os nossos avós conheciam. Hoje, são mini-computadores que se adaptam a ambientes específicos – conseguem amplificar a voz de um amigo num restaurante barulhento enquanto reduzem o ruído de fundo. Tecnologia de ponta, sim, mas acessível? Essa é outra conversa. O SNS cobre parte dos custos, mas as listas de espera podem ser longas, e os modelos mais avançados permanecem um investimento significativo para muitas famílias.

O neurocientista Dr. Ricardo Silva, do Instituto de Medicina Molecular, explica: 'O cérebro auditivo é como um músculo. Se não for estimulado, atrofia. A privação sonora prolongada pode levar a alterações estruturais no córtex auditivo, dificultando a reabilitação.' Esta descoberta recente mudou paradigmas – já não se espera que a perda seja 'severa' para intervir. A deteção precoce tornou-se crucial.

Nas escolas portuguesas, um projeto pioneiro está a mudar vidas. Crianças com perdas auditivas ligeiras, muitas vezes não diagnosticadas, estão a receber apoio personalizado. 'Notávamos que alguns alunos pareciam desatentos ou com dificuldades de aprendizagem', conta a professora Sofia Martins, de Lisboa. 'Após rastreios auditivos, descobrimos que muitos simplesmente não ouviam bem. Agora, com estratégias simples e, quando necessário, dispositivos de apoio, o seu rendimento escolar melhorou dramaticamente.'

Mas a tecnologia é apenas parte da solução. A psicóloga clínica Ana Lopes especializou-se em acompanhar pessoas no processo de adaptação a aparelhos auditivos. 'Há um luto a fazer pelo som que se perdeu, e uma nova identidade a construir. Muitos pacientes descrevem os primeiros dias como avassaladores – ouvem o frigorífico a trabalhar, o tic-tac do relógio, sons que há anos não registavam. É uma reeducação auditiva.'

Nos cafés de Coimbra, um grupo de homens e mulheres entre os 40 e os 80 anos reúne-se mensalmente. Chamam-lhe 'Clube do Ouvido Atento'. Partilham dicas, frustrações e conquistas. João, 52 anos, chef de cozinha, perdeu parte da audição devido ao ruído constante das cozinhas profissionais. 'Aqui ninguém me pede para repetir, ninguém fala devagar como se eu fosse incapaz. Finalmente posso ser eu próprio.' Este apoio entre pares tem provado ser tão importante quanto o tratamento médico.

O futuro da saúde auditiva em Portugal está a ser escrito em laboratórios de Braga e no Algarve, onde se investigam soluções baseadas em inteligência artificial e regeneração celular. Enquanto isso, nas ruas, cresce a consciencialização. Campanhas como 'Ouve o Mundo' levam rastreios gratuitos a feiras e mercados, desmistificando o tema.

Recuperar a audição é mais do que voltar a ouvir – é reconquistar a conexão com o mundo e com os outros. É redescobrir a música dos pequenos momentos: o riso de uma criança, a melodia da chuva contra a janela, o 'bom dia' do vizinho. Num país conhecido pela sua voz suave e pelas conversas de café, ouvir bem não é um luxo – é uma forma de preservar a nossa humanidade partilhada.

A próxima vez que alguém lhe pedir para repetir, ou notar que o volume da televisão está mais alto do que o habitual, lembre-se: pode não ser distração. Pode ser um pedido silencioso de ajuda, uma porta entreaberta para um mundo que está, lentamente, a ficar mais silencioso. E nesse silêncio, perdem-se histórias, perde-se contacto, perde-se vida. A boa notícia? Nunca foi tão possível recuperar o que parecia perdido.

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