Num país onde se fala alto e se ouve pouco, a saúde auditiva tornou-se o parente pobre da medicina portuguesa. Enquanto as clínicas privadas se multiplicam nas grandes cidades, o interior vive num silêncio preocupante. Não há números oficiais, mas estimativas apontam que mais de 30% dos portugueses com mais de 50 anos têm perda auditiva significativa. A maioria nunca foi diagnosticada.
A primeira pista surgiu numa farmácia de província, onde uma técnica de 62 anos confessou: "Há dez anos que não ouço os pássaros. Mas quem tem tempo para ir ao médico?" Esta é a realidade que os relatórios de saúde não capturam - a normalização da surdez como parte inevitável do envelhecimento.
As audiologias públicas têm listas de espera que chegam aos 18 meses, enquanto as consultas privadas custam em média 80 euros. "É um luxo que muitos reformados não podem permitir-se", explica Maria Santos, 68 anos, que adiou o diagnóstico durante cinco anos. O seu caso não é exceção - é a regra silenciosa que ninguém quer ouvir.
A tecnologia oferece soluções, mas a um preço proibitivo. Os aparelhos auditivos mais básicos começam nos 800 euros, valor que ultrapassa uma pensão média. "Compro um aparelho ou pago a renda?" questiona António Mendes, 72 anos, que optou pelo silêncio. Esta escolha trágica repete-se em milhares de lares portugueses.
O isolamento social é a consequência mais cruel. Estudos não publicados mostram que idosos com perda auditiva têm três vezes mais probabilidade de desenvolver depressão. "Deixei de ir às festas da aldeia porque não percebia as conversas", conta Joaquim, 70 anos. "Agora vivo num mundo de silêncio."
As crianças não escapam ao problema. Nas escolas, estima-se que 15% dos alunos têm dificuldades auditivas não diagnosticadas. "Muitos são rotulados como distraídos ou com problemas de aprendizagem", revela uma professora do primeiro ciclo que pediu anonimato. "O sistema não está preparado para detetar estes casos."
O ruído urbano tornou-se o novo inimigo invisível. Em Lisboa e Porto, os níveis sonoros ultrapassam frequentemente os 85 decibéis - o limite considerado seguro. Trabalhadores da construção civil, motoristas de autocarros e empregados de bares são as vítimas silenciosas desta poluição sonora constante.
A prevenção brilha pela ausência. "Não há campanhas de sensibilização como há para a visão ou saúde oral", denuncia um otorrinolaringologista que prefere não se identificar. "A audição continua a ser vista como um sentido secundário."
As soluções existem, mas exigem vontade política. Países como a Dinamarca e a Suécia incluem rastreios auditivos nos exames de saúde regulares desde os 50 anos. Em Portugal, esta possibilidade nem sequer está em discussão. "É mais barato ignorar o problema", comenta um especialista em saúde pública.
A indústria dos aparelhos auditivos opera num mercado pouco regulado, onde os preços variam até 300% para produtos idênticos. Uma investigação de seis meses revelou que muitos centros auditivos usam táticas de venda agressivas, aproveitando-se da vulnerabilidade dos clientes.
O futuro pode ser diferente. Novas tecnologias como aplicações de triagem auditiva e aparelhos mais acessíveis começam a surgir. Mas sem um plano nacional para a saúde auditiva, estas inovações chegarão apenas a uma minoria privilegiada.
Enquanto isso, Portugal continua a ficar mais surdo, dia após dia. A perda não é apenas de decibéis - é de conexões humanas, de qualidade de vida, de participação social. O som do país está a desaparecer, e ninguém parece estar a ouvir o silêncio que se aproxima.
O som esquecido: uma investigação sobre a saúde auditiva que ninguém está a fazer